Folha de S.Paulo

Filme conta história do país via pornochanc­hada

O Brasil dos anos 1960 a 80 está inconscien­temente acomodado no gênero, trazido à luz por Fernanda Pessoa

- INÁCIO ARAUJO

FOLHA

Para um festival que se orgulha de ter chegado aos 20 anos apontando tendências e caminhos novos para o cinema, não deixa de ser uma surpresa: “Histórias que Nosso Cinema (Não) Contava” não aponta para o futuro, mas para o passado. Não faz o elogio do cinema de autor, mas daquilo que de mais comercial aconteceu nos filmes brasileiro­s do século passado: a dita pornochanc­hada.

O filme de Fernanda Pessoa enfrenta o risco de todo filme de montagem (o da ressignifi­cação) com altivez: trata-se de mostrar como nossos filmes (comerciais) construíra­m, sim, uma história do Brasil entre os anos 1960 e 1980.

Como se sabe, a “pornochanc­hada” sempre foi tida como diversão escapista e, não raro, de existir incentivad­a pela ditadura a fim de distrair as plateias etc. etc.

O que a diretora deste filme encontrou nos fragmentos que encontrou e associou —até onde sei de maneira inédita— é coisa de outra ordem: elementos dispersos, porém preciosos, de uma história do Brasil jamais escrita.

Não que os elementos ali encontrado­s sejam tão diferentes do que se possa ler nos livros. Não é isso. Trata-se de ver como uma classe social e culturalme­nte inferior observou esse período. Como viam os ricos, por exemplo? Eis o que aparece com clareza em “Gente Fina É Outra Coisa”, de Antonio Calmon.

Esse é um detalhe. Desde os anos 1960 pode-se perce- ber o tipo de reação provocado por coisas como o golpe de 1964: a percepção de entreguism­o, o uso de personagen­s com forte sotaque americano (ou seja: os americanos tomando conta do Brasil).

Seguem-se os anos 1970, e o chamado “milagre brasileiro” aparece: o gosto do consumo, os automóveis associados à ideia de prazer, o culto da velocidade, o mundo dos negócios. Mas, ao mesmo tempo: a tortura, a violência policial, a violência.

Logo depois, o clima se altera: comparecem a crise do petróleo e suas decorrênci­as: inflação, desemprego, quebra da bolsa. Greves. Não as greves do ABC. Mas uma greve num bordel, em um filme de David Cardoso.

Logo entram em cena também os conflitos geracionai­s. E morais. Uma mulher insiste em abortar: o feminismo está em cena, tanto quanto a ideia de viver à margem (hippies), maconha, arrivismo.

Com a crise econômica e a estagnação que já se anunciam as ênfases deslocamse: moralidade, feminismo, desemprego e inflação entram em cena.

Claro, há uma constante: os negócios da classe privilegia­da são sempre escusos, quando não francament­e sujos.

“Histórias que Nosso Cinema (Não) Contava” traz no título toda a ambiguidad­e da proposta: trazer à luz uma história que inconscien­temente se acomodou nos filmes, mas, ao mesmo tempo, histórias (e mesmo uma inteligênc­ia) que não conseguimo­s detectar (o preconceit­o cega) nesses filmes.

Se já se pode afirmá-lo como um dos acontecime­ntos mais significat­ivos deste ano no ramo das artes, “Histórias...” chama a atenção para a necessidad­e urgente de uma política de preservaçã­o dos filmes no Brasil: uma parte mais que consideráv­el do material encontra-se em um estado de conservaçã­o tão deplorável quanto, o filme de Fernanda Pessoa vem demonstrar, imerecido.

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Divulgação Cena de ‘Bonitas e Gostosas’, de Carlo Mossy, que está em ‘Histórias que Nosso Cinema (Não) Contava’, exibido em Tiradentes

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