Folha de S.Paulo

Ai, que preguiça de traduzir!

- SÉRGIO RODRIGUES COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Leão Serva; terça: Rosely Sayão; quarta: Francisco Daudt; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Oscar Vilhena Vieira; domingo: Antonio Prata

“LIBERDADE NÃO é sobre transar na primeira noite, e sim sobre não querer transar e não transar.” A frase me aparece no artigo de uma jovem feminista brasileira que as ondas digitais trouxeram casualment­e à minha praia.

Incorporo o velho copidesque e a traduzo mentalment­e para o português publicável: “Liberdade não tem a ver com transar na primeira noite, e sim com não querer transar e não transar”. Só então me dou conta de que, fazendo isso sempre que me deparo com a construção torta, ando ocupadíssi­mo.

Como tantas traduções ruins, “ser sobre” deixa entrever a construção estrangeir­a que tem por matriz —no caso, o inglês “to be about”.

Em dublagem barata de telefilme, passa. Num texto original brasileiro, a ideia contida em “to be about” costuma ser expressa pelas palavras “ter a ver com”, “ter relação com”. Ou mesmo, num belo exemplo de concisão, pelo verbo “ser”!

Não fica bacana? “Liberdade não é transar na primeira noite, e sim não querer transar e não transar.”

Estamos falando de um dos mais insidiosos modismos importados da língua do Pato Donald. Uma tradução literal que poderíamos chamar de macunaímic­a —no sentido da preguiça, sem dúvida; no da ausência de caráter, talvez.

Quero deixar claro que não sou xenófobo ou purista. A língua portuguesa não é uma moçoila virginal ameaçada pela avalanche de palavras inglesas. É mais forte do que se pensa e, vamos falar claro, nunca foi santa.

A própria “avalanche” do parágrafo anterior, remanescen­te do tsunami de palavras francesas que arrastou nossos letrados no século 19, prova que uma dieta rica em estrangeir­ismos engorda e faz crescer. Aliás, o termo japonês “tsunami” está no mesmo caso. Podíamos ficar nisso o dia todo.

Anos atrás, fui um dos críticos do projeto do deputado Aldo Rebelo (PCdoB) que previa multa para quem usasse palavras importadas. Coisa não só irrealizáv­el, mas ignorante em sua visão do idioma e perigosa em sua inspiração totalitári­a.

Nada disso nos obriga a aplaudir a anglofilia jeca que acomete setores da classe média, em especial lá pelas bandas do corporativ­ês, do marquetês e do informatiq­uês.

Se o uso de termos anglófonos tem lógica econômica, pois as palavras vêm nos pacotes de tecnologia e serviços que importamos, seu alcance é muito ampliado por certa aura, por uma sobra de valor simbólico.

Aquilo que se exprime em inglês, idioma “vencedor”, soa mais sério, competitiv­o, atraente. Isso, sim, me parece um alvo digno de chumbo grosso. O abuso de estrangeir­ismos não ameaça o português, mas revela uma deficiênci­a de autoestima. É sintoma de um problema cultural.

O que fazer? Confesso que, além da minha resposta-padrão para as mazelas brasileira­s em geral (educação, educação, educação!), não sei.

Talvez um começo seja denunciar a postura culturalme­nte servil que falantes educados, quem sabe intelectua­is, alguns até inflamados de nacionalis­mo, revelam sem querer quando concebem uma construção grotesca como “ser brasileiro é sobre ter jogo de cintura”.

Ou não. Vai ver que o errado sou eu e que um dia teremos de traduzir para o “sobrismo” diversas frases famosas de nossa história: “Um país é sobre homens e livros” (Monteiro Lobato); “Governar é sobre abrir estradas” (Washington Luís); “O mundo é sobre um moinho” (Cartola).

Nada de purismo, por favor, mas o modismo anglófilo do ‘isso é sobre aquilo’ pega muito mal

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