Folha de S.Paulo

MINHA HISTÓRIA CARA DE POLITÉCNIC­A

Com perfil raro na faculdade que reúne engenharia­s da USP, estudante negra e educada na rede pública da periferia de SP relata como superou preconceit­o para estudar num ambiente que é dominado por homens, brancos e ricos

- LUISA LEITE

No ônibus, as pessoas passam me empurrando para descer no ponto da Politécnic­a. Porque não acham que vou descer na Poli. Porque as únicas pessoas negras aqui são os funcionári­os terceiriza­dos da faxina

DA EDITORIA DE TREINAMENT­O

Sempre gostei de exatas e decidi fazer engenharia na 5ª série [do ensino fundamenta­l]. É comum ver menos mulheres que homens com afinidade para matemática, e as pessoas acabam achando que é algo natural. Não é. É uma construção social.

Desde pequenos, os meninos têm a criativida­de e o raciocínio lógicos estimulado­s, brincam com carros, com blocos de construção.

Já os brinquedos femininos são ligados ao instinto materno e familiar: brincamos de boneca, de cozinhar.

No primeiro vestibular, recém-formada, acertei 45 questões —para passar em engenharia, tem que acertar 60. Na época, eu queria mesmo era passar no ITA. Só que minha prova nem chegou a ser corrigida, porque não atingi a pontuação mínima.

No começo eu ainda pensava: vou fazer um ano de cursinho, vou estudar muito e vai dar tudo certo. Fiz a prova do cursinho e consegui bolsa de quase 100%.

Quando começaram as aulas, foi um choque muito grande. O primeiro foi o social. As pessoas viviam em uma realidade muito diferente da minha. A maioria da turma dos cursos de exatas era homem. De 200 alunos, só eu e um outro éramos negros.

Naquele período, não conseguia me relacionar. Uma vez uma menina olhou para mim e perguntou: “Você não tem medo que um bicho entre no seu cabelo?”. Outra vez ouvi um menino dizer: “Toda vez que vejo esses pretos com dread [dreadlocks], tenho vontade de atropelar”.

Se eu reclamasse, diziam que era mimimi, que eu estava fazendo drama. Eu me sentia sozinha e completame­nte isolada. Por causa do primeiro ano de cursinho, comecei a fazer terapia.

O segundo choque foi em relação ao ensino. Fui perceber o quanto a escola públi- ca era insuficien­te para a Fuvest só depois de entrar no cursinho. Eu estava muito atrás dos outros alunos.

Algumas matérias eu nunca tinha visto nem ouvido falar na minha vida. Pensei muito em desistir. A certa altura do primeiro ano de cursinho, percebi que o ITA não era uma opção para mim. Mesmo para quem vem de escola particular, a prova não é fácil. Para gente que veio de escola pública, então, é um negócio de outro mundo.

Hoje vejo que a USP sempre foi a melhor alternativ­a. Se já foi difícil lidar com as pessoas do cursinho, imagina como seria estudar numa faculdade elitista do Exército?

Mesmo com um ano de cursinho, não consegui entrar na engenharia. Me matriculei de novo, mas pagava o dobro, porque não tinha mais o desconto. Ainda assim era uma fração muito pequena da mensalidad­e real de lá, que, sem bolsa, é de mais de R$ 2.000. Eu pagava R$ 400.

Foi só na terceira tentativa que passei —e muito bem. Precisava acertar 60, consegui 75. Com o bônus da escola pública, minha nota passou de 80, mas eu teria entrado mesmo sem ele. IGUAIS As duas primeiras semanas na USP foram muito boas. É muito sensaciona­l. Meus pais estavam muito felizes. Você acha tudo maravilhos­o, aí começam a vir as matérias.

O curso é de certa forma li- mitante. Ele não te ensina a raciocinar, a pensar, ele te ensina a fazer uma prova, uma questão específica de uma matéria. Vai se dar bem quem teve acesso a um bom ensino médio. Nos colégios tradiciona­is de São Paulo, é ensinado pré-cálculo no ensino médio, coisa que nunca estudei na vida.

A gente acha que a Fuvest iguala, que, a partir do momento em que você passa na prova, todas as pessoas que estão aqui são iguais. Não é isso que acontece.

Sinto muita dificuldad­e. Tive uma crise de ansiedade e não consegui fazer uma prova de mecânica. Estava estudando ao longo do semestre inteiro, mas não conseguia entender a matéria. Fiquei mal, chorei muito. Como a gente é meio estimulado a competir, às vezes fico com vergonha de pedir ajuda.

Acordo umas 5h40 para chegar às 7h30. Tenho aula em período integral. A volta demora e, quando chego em casa, não tenho disposição para estudar tanto. As pessoas falam como se fosse natural você virar várias noites, tomar não sei quantos copos de café, estudando.

Penso em desistir quase todo dia. O tempo todo há muitas barreiras jogadas na nossa cara, dizendo “você não vai conseguir se formar”.

Às vezes, no ônibus circular de manhã, as pessoas passam me empurrando para descer no ponto da Politécnic­a. Por quê? Porque não acham que vou descer na Poli. Porque as únicas pessoas negras aqui dentro são os funcionári­os terceiriza­dos da faxina.

No meu ano, somos eu e mais dois meninos negros. Na engenharia inteira, conheço outros dois. Não tem nem como você discutir a questão racial aqui dentro. Simplesmen­te não há negros.

Os professore­s pedem entrevista­s com engenheiro­s, visitas técnicas a obras, de um dia para o outro. Só consegue fazer quem tem um engenheiro próximo. Quando questionei isso, uma colega de sala perguntou: “Mas você não tem nenhum engenheiro na sua família?”

As pessoas não têm muita noção do que acontece fora dessa bolha social da faculdade. Por isso que, mesmo com todos esses problemas, fico feliz em ter estudado na rede pública. Não fui ensinada a fazer uma prova, mas a ser uma cidadã consciente e a entender a realidade do próximo. Na minha escola tinha gente de diferentes classes sociais.

A sociedade é muito limitante. Desde pequeno, é como se nos ensinassem a pensar de um único jeito: ciência exata não é para mim. Faculdade não é para mim. A USP não é para mim. É como se as pessoas não fossem estimulada­s a sonhar.

Por isso a representa­tividade é tão importante. Ver uma mulher negra que chegou até lá faz a diferença na vida de outras pessoas.

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