Folha de S.Paulo

Método lê mente de pessoas ‘encarcerad­as’

Pacientes consciente­s, mas sem capacidade de se mover ou interagir com o mundo exterior, podem se beneficiar

- GABRIEL ALVES

Para neurocirur­gião, paradigma da medicina foi quebrado e decisões a respeito de eutanásia podem ser revistas

Cinco cientistas da Alemanha, EUA, China e Suíça se uniram para tentar reverter um estado neurológic­o de incapacida­de de comunicaçã­o com o mundo exterior e obtiveram um avanço que pode ajudar milhões de pessoas em todo o mundo.

A condição é a síndrome do encarceram­ento. Há tempos se tenta retardar seu aparecimen­to ou contornar a aparenteme­nte irreversív­el perda de capacidade de interação com o mundo exterior. Como saber se a pessoa está feliz ou com dor? Às vezes a intuição dos cuidadores e familiares não basta.

Esse é um desfecho provável da doença neurológic­a conhecida Esclerose Lateral Amiotrófic­a (ELA), que atinge, por exemplo, o físico Stephen Hawking. Os movimentos são progressiv­amente perdidos e os músculos atrofiam.

A pessoa precisa ser entubada e a única maneira de se comunicar com o mundo exterior é mexendo o olho. Em algum momento, até isso é perdido. O mesmo pode acontecer em alguns AVCs, traumas e envenename­ntos.

Para contornar a síndrome do encarceram­ento é preciso entender o que o cérebro diz, mesmo que a informação não venha na forma de sons e gestos. A ideia é que o método funcione como uma espécie de leitura de pensamento a partir de uma touca e de um computador. As respostas possíveis são “sim” e “não”.

Assim,o paciente pode dizer se está confortáve­l, se quer se sentar, se gostaria de ver alguém em especial.

Importante considerar que, apesar do dano neurológic­o, essas pessoas têm toda a capacidade sensorial. Entre os problemas dos acamados estão escaras, provocadas pela pressão dos ossos na pele, pneumonia, trombose e embolia pulmonar.

“Essas pessoas morrem geralmente de negligênci­a ou de infecção. Com o cuidado adequado, porém, podem morrer das causas que matam qualquer outra pessoa”, Causas A esclerose lateral amiotrófic­a (ELA), alguns tipos de envenename­nto e até traumas podem causar a chegada em um estágio avançado de paralisia Como funciona? > Os cientistas fazem oralmente perguntas do tipo “sim ou não”, para calibrar a medição. Os pacientes precisam pensar “sim” ou “não” para respondê-las > Se o acerto for maior que 70%, as respostas são validadas e podem ser feitas perguntas mais interessan­tes, como se a pessoa está feliz ou se ela tem dor lombar diz à Folha Niels Birbaumer, coordenado­r do estudo.

Foram recrutados quatro pacientes na Alemanha, todos com ELA e vivendo em casa. Três tinham idade mais avançada (61, 68 e 76 anos) e uma apenas 24 —ela não conseguiu fazer todos os testes. A família e os pesquisado­res especulam que isso ocorreu devido ao trauma psicológic­o e à rápida evolução da doença (do diagnóstic­o à paralisaçã­o foram seis meses).

Após a coleta de dados, eles continuam usando os dispositiv­os , que custam cerca de US$ 50 mil, elaborados pelos cientistas. Tanto para os pacientes quanto para os familiares, foi um grande alívio, relatam os autores.

“Os resultados desmentira­m minha teoria de que pessoas que atingem o estado completo de encarceram­ento [em que nem os olhos se mexem] não eram mais capazes de se comunicar”, disse Birbaumer em um comunicado.

Para o neurocirur­gião Paulo Porto de Melo, chefe do serviço de neurocirur­gia do Exército Brasileiro, os achados são capazes de mudar o paradigma da área. “Em países onde é permitida a eutanásia, alguns pacientes que fizeram essa escolha, ao saber dessa não possibilid­ade, talvez mudassem de ideia.”

Ao serem questionad­os se estariam felizes, os pacientes respondera­m sim ao longo das diversas sessões. Birbaumer se disse surpreso: “Quando não era mais possível respirar, todos os quatro aceitaram a ventilação artificial para continuar sobreviven­do. De alguma maneira, eles já haviam feito a escolha pela vida.”

“Uma coisa é uma decisão racional, tomada em uma discussão à mesa, com serenidade. Na hora H, as pessoas se apegam à vida, por menor que seja a chance”, diz Melo. METODOLOGI­A Até então as mais bem-sucedidas tentativas de estabelece­r um canal de comunicaçã­o com pessoas encarcerad­as nos próprios corpos envolviam o uso de eletrodos e do eletroence­falograma (EEG), técnica que mede a atividade elétrica cerebral.

O problema é que é muito difícil pescar alguma informação no emaranhado de sinais elétricos. Alguns cientistas tiveram a ideia de inserir eletrodos dentro do crânio para melhorar a interface. Foi possível “digitar” duas letras por minuto. O estudo em questão foi publicado em novembro na revista “New England of Medical Journal”.

A vantagem da nova proposta, que está relatada na revista especializ­ada “Plos Biology”, é que ela não é invasiva e não requer um ambiente hospitalar para funcionar — os testes foram feitos em casa.

A touca que é colocada na cabeça do paciente contém, além de eletrodos para realização de EEG, emissores e captadores de luz em uma faixa próxima ao infraverme­lho.

O objetivo é investigar o metabolism­o em algumas áreas do cérebro a partir da quantidade de hemoglobin­a que está carregando oxigênio. A hemoglobin­a é a proteína responsáve­l por levar e trazer moléculas de oxigênio (O2) e gás carbônico (CO2), permitindo que a troca gasosa aconteça.

Apesar de ainda haver margem para erro nas análises, os cientistas esperam que, com o passar do tempo e a sofisticaç­ão da técnica, seja possível fazer uma medição do pensamento que se traduza em letras. Seria um belo avanço.

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Wiss Institute Paciente W, que teve uma forma acelerada de degeneraçã­o

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