Folha de S.Paulo

Mostra retrata a natureza em convulsão

Florestas e grandes cidades surgem como espaços de conflito em filmes e vídeos de exposição agora no Galpão VB

- SILAS MARTÍ

Seleção reúne trabalhos de Luiz Roque, Marcellvs L., Cao Guimarães, Eder Santos e outros do acervo do festival Videobrasi­l

Numa pedreira, à noite, tratores rondam as rochas em movimentos nervosos. Lembram bichos mecânicos dotados de certa maldade. O filme de Eder Santos reforça essa impressão com sobressalt­os da imagem, como se o negativo engastasse no projetor.

Esse é o momento tenso da obra, a paisagem retratada como água fervente ou a pele de um corpo em convulsão. Um tanto como a pele do filme de Luiz Roque, que sobrepõe folhas de ouro aos seios de uma mulher e unhas afiadas deslizando sobre as costas dela.

Ou a figura esguia de um operário dourando ao sol no curta de Edgard Navarro. Sua releitura de “Fazenda Modelo”, livro de Chico Buarque, mostra o rapaz correndo as mãos pelo corpo, explorando um tal “urbanismo das veias”.

Nos filmes e vídeos de “Resistir, Reexistir”, exposição coletiva agora no Galpão VB, a natureza selvagem e as selvas de pedra das grandes cidades são retratadas como território em carne viva, espaços de disputa e conflito.

Da floresta amazônica aos subúrbios concretado­s do interior dos Estados Unidos, os artistas ali exploram brigas por moradia, a extração predatória de minério e os estragos que aberturas de estradas causaram nas reservas indígenas.

“Nesses tempos tenebrosos, a gente pensou em amplificar o espaço da dissonânci­a”, diz Gabriel Bogossian, que organiza a mostra. “Essas imagens mostram disputas em torno do espaço num momento em que a perspectiv­a sobre a cidade é muito restritiva, medíocre.”

Ele ataca, no caso, a camisa de força que tempos ultraconse­rvadores impõem sobre os ambientes construído­s mas também o impacto dessas políticas sobre espaços selvagens, às margens das grandes metrópoles, tratando floresta e asfalto em pé de igualdade.

Tudo nesses documentár­ios às avessas, aliás, parece fazer parte de uma mesma natureza trêmula, escorregad­ia, líquida como os reflexos das copas das árvores na superfície turva de um lago.

Num filme rodado num parque, Cao Guimarães constrói quase abstrações a partir de flagras dessa vegetação movediça. Marcellvs L. cria a mesma textura instável retratando um andarilho no acostament­o de uma estrada, sua figura frágil se desfazendo nas ondas de calor sobre o asfalto.

Outras estradas surgem numa série de obras da exposição, que se esforça para mostrar que tudo está interligad­o e em trânsito, no caso, rumo a um destino violento e incerto.

Esse descompass­o temporal ancora a visão de Andrés Denegri das vias letárgicas de um povoado no deserto boliviano de Uyuni. O artista argentino filmou as mesmas cenas em película e vídeo digital, sobrepondo as sequências rodadas em velocidade­s distintas ao som da discussão de um casal entediado.

O que seria um imenso platô perdido no tempo ganha uma vibração artificial, que embaralha realidade e ficção, ou passado, presente e futuro. ACRÓPOLE MODERNISTA Lançando um olhar sobre a exploração econômica da paisagem, Ana Vaz também cria uma fantasia ao visitar o mesmo universo do filme de Eder Santos, escaneando pedreiras e seus operários.

Mas, mesmo com certa pretensão documental, sua obra está longe de ser um registro cru das minas. De repente, vigas e pilares com a mesma textura do mármore extraído aparecem no horizonte, uma espécie de Acrópole modernista brotando da terra.

Vaz parece aludir ali a uma violência intrínseca a movimentos de modernizaç­ão, que atropelam a memória em nome de uma beleza imaginada para um futuro utópico.

É um trabalho que encontra eco no registro da demolição de um conjunto habitacion­al modernista, assunto da obra do colombiano Luis F. Ramírez Celis na sala ao lado —o flagra de um futuro possível que vira pó em instantes. QUANDO de ter. a sáb., das 12h às 18h; até 18/3 ONDE Galpão VB, av. Imp. Leopoldina, 1.150, tel. (11) 3645-0516 QUANTO grátis

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Fotos Divulgação Cena de ‘Concerto para Clorofila’, trabalho de Cao Guimarães, exibido na mesma exposição
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Operário em cena do filme ‘A Idade da Pedra’, de Ana Vaz, agora em mostra no Galpão VB

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