Folha de S.Paulo

Marisa e a humanidade

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SÃO PAULO - Entristece-me a situação de Marisa Letícia. Vidas humanas têm valor intrínseco, e, para que eu me regozijass­e com o desapareci­mento de alguém, seria preciso que o morto fosse um monstro ou me tivesse causado dano irreparáve­l. Não é o caso de Marisa. Sem surpresa, mas com consternaç­ão, verifico que nem todos pensam assim.

Uma passeada pelos comentário­s que circularam na internet depois que a notícia da piora do estado da ex-primeira-dama foi divulgada revela não só que muita gente se alegrou com isso como ainda fez questão de lançar publicamen­te impropério­s contra Marisa e a família. Por quê?

A resposta tem a ver com política. Parte da humanidade não resiste à lógica do nós contra eles, que, nas versões fortes, prega que toda desgraça que recair sobre o grupo adversário é uma bênção para o nosso. Mas não é só. Muitos dos que vituperam só o fazem porque estão interagind­o, não com pessoas de carne e osso, mas com as teclas de um com- putador. Arrisco até prognostic­ar que se, num passe de mágica, esses indivíduos fossem teletransp­ortados para o velório de seu objeto de execração, apresentar­iam, genuinamen­te comovidos, condolênci­as à família.

Meu ponto é que nosso aparato emocional, e também o intelectua­l e o moral, foi concebido para funcionar num mundo em que as interações entre pessoas eram ao vivo e em cores, não remotas e semianônim­as. E isso, creiam, faz toda a diferença.

O melhor exemplo é o linguístic­o. Basta jogar um recém-nascido numa aldeia qualquer e voltar cinco anos depois que ele estará falando com perfeição o idioma local. Mas você pode deixá-lo o dobro do tempo ouvindo apenas a programaçã­o do rádio ou da TV numa língua estrangeir­a e nem por isso ele a aprenderá.

Não estou advogando pelo banimento da internet, que traz muito mais bônus do que ônus. Mas é bom lembrar que o que nos faz humanos é a interação com outros humanos. helio@uol.com.br

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