Folha de S.Paulo

BEM-VINDO A MOSSUL

- YAN BOECHAT COLABORAÇíO PARA A EM MOSSUL (IRAQUE)

De longe, parece um daqueles tradiciona­is bonecos de pano usados nas brincadeir­as de malhação de Judas no Sábado de Aleluia.

As pernas, cobertas por uma ceroula de algodão, guardam a forma e a dimensão dos membros inferiores de um ser humano. Têm a aparência de serem fofas e, não fosse uma das meias faltando, tudo faria crer que estavam recheadas com palha.

O torso e a cabeça, no entanto, lembram um esqueleto de brinquedo usado nas festas do Dia das Bruxas. Os membros superiores não estão ali, e apenas as costelas e a espinha dorsal ainda pre- servam caracterís­ticas humanas. O crânio escuro, com os dentes brancos, dá a impressão de que há um sorriso no rosto imaginário.

Pendurado na entrada da cidade iraquiana de Mossul, em um bairro arrasado pelos bombardeio­s aéreos, o corpo chama pouca atenção de quem passa por ali. É só de perto que se percebe o horror e a barbárie que ele guarda.

Os nervos que saem das cavidades oculares, pendurados como se fossem pequenas cordas de barbante, e os pedaços de carne e músculo em decomposiç­ão que unem as costelas deixam à mostra de que se trata do cadáver de um homem. Seu crânio tem um buraco do tamanho de um punho fechado.

Tronco, quadril e pernas estão unidos ainda pela coluna. Para evitar que se rompam pela força da gravidade, os homens que o penduraram ali usam um pedaço de metal retorcido do poste de luz como uma espécie de banco, onde assentaram as nádegas.

Vez ou outra, curiosos mais atentos param para checar o corpo. Quase todos fazem selfies em frente a ele. E terminam a breve visita, invariavel­mente, comentando que esse é o destino que todos os combatente­s da milícia terrorista Estado Islâmico devem ter. Mas ninguém sabe ao certo quem foi aquele homem.

É provável que tenha sido um dos tantos combatente­s da facção que morreram no lado leste de Mossul nos combates dos últimos três meses.

As forças iraquianas falam em 3.000 mortos desde que a operação para retomar a segunda maior cidade iraquiana começou, em outubro.

Assim como o homem que dá boas-vindas macabras a quem chega a Mossul, muitos corpos permanecem espalhados pela cidade. “Eu pedi várias vezes para o Exército recolher esses cadáveres. Eles não são bons para a saúde das pessoas, tanto física como mental”, diz Ahmed Hamil, um dos oito médicos do único hospital civil em funcioname­nto na cidade.

Como todos os outros profission­ais que atuam ali, ele passou os últimos dois anos e meio trabalhand­o sob ordens do EI. “São cenas que vimos nesse tempo e que, infelizmen­te, vemos agora novamente”, diz Hamil.

Corpos expostos à população são um costume do EI. E, de certa forma, prática comum às forças vencedoras em batalhas no Iraque e Oriente Médio como um todo.

Isso talvez explique por que ainda é possível encontrá-los nas ruas de Mossul. Os moradores parecem desaprovar a prática, mas têm medo de tocar os corpos pela suspeita de que possam estar com explosivos ou desrespeit­ar os soldados, que fazem questão de mantê-los nos lugares em que foram abatidos.

Quem agradece são cães, gatos e até mesmo galinhas, que vêm se alimentand­o dos cadáveres. A reportagem viu dois cachorros e algumas galinhas comendo corpos humanos em diferentes bairros.

Quando recolhidos, os cadáveres são tratados como lixo, levados em caminhões para grandes valas cavadas nos extremos da cidade. Têm o mesmo destino da sujeira que se acumula numa cidade que passou os últimos três meses em guerra.

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Yan Boechat/Folhapress Moradores tiram foto diante de cadáver exposto ao público em Mossul, no Iraque

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