BEM-VINDO A MOSSUL
De longe, parece um daqueles tradicionais bonecos de pano usados nas brincadeiras de malhação de Judas no Sábado de Aleluia.
As pernas, cobertas por uma ceroula de algodão, guardam a forma e a dimensão dos membros inferiores de um ser humano. Têm a aparência de serem fofas e, não fosse uma das meias faltando, tudo faria crer que estavam recheadas com palha.
O torso e a cabeça, no entanto, lembram um esqueleto de brinquedo usado nas festas do Dia das Bruxas. Os membros superiores não estão ali, e apenas as costelas e a espinha dorsal ainda pre- servam características humanas. O crânio escuro, com os dentes brancos, dá a impressão de que há um sorriso no rosto imaginário.
Pendurado na entrada da cidade iraquiana de Mossul, em um bairro arrasado pelos bombardeios aéreos, o corpo chama pouca atenção de quem passa por ali. É só de perto que se percebe o horror e a barbárie que ele guarda.
Os nervos que saem das cavidades oculares, pendurados como se fossem pequenas cordas de barbante, e os pedaços de carne e músculo em decomposição que unem as costelas deixam à mostra de que se trata do cadáver de um homem. Seu crânio tem um buraco do tamanho de um punho fechado.
Tronco, quadril e pernas estão unidos ainda pela coluna. Para evitar que se rompam pela força da gravidade, os homens que o penduraram ali usam um pedaço de metal retorcido do poste de luz como uma espécie de banco, onde assentaram as nádegas.
Vez ou outra, curiosos mais atentos param para checar o corpo. Quase todos fazem selfies em frente a ele. E terminam a breve visita, invariavelmente, comentando que esse é o destino que todos os combatentes da milícia terrorista Estado Islâmico devem ter. Mas ninguém sabe ao certo quem foi aquele homem.
É provável que tenha sido um dos tantos combatentes da facção que morreram no lado leste de Mossul nos combates dos últimos três meses.
As forças iraquianas falam em 3.000 mortos desde que a operação para retomar a segunda maior cidade iraquiana começou, em outubro.
Assim como o homem que dá boas-vindas macabras a quem chega a Mossul, muitos corpos permanecem espalhados pela cidade. “Eu pedi várias vezes para o Exército recolher esses cadáveres. Eles não são bons para a saúde das pessoas, tanto física como mental”, diz Ahmed Hamil, um dos oito médicos do único hospital civil em funcionamento na cidade.
Como todos os outros profissionais que atuam ali, ele passou os últimos dois anos e meio trabalhando sob ordens do EI. “São cenas que vimos nesse tempo e que, infelizmente, vemos agora novamente”, diz Hamil.
Corpos expostos à população são um costume do EI. E, de certa forma, prática comum às forças vencedoras em batalhas no Iraque e Oriente Médio como um todo.
Isso talvez explique por que ainda é possível encontrá-los nas ruas de Mossul. Os moradores parecem desaprovar a prática, mas têm medo de tocar os corpos pela suspeita de que possam estar com explosivos ou desrespeitar os soldados, que fazem questão de mantê-los nos lugares em que foram abatidos.
Quem agradece são cães, gatos e até mesmo galinhas, que vêm se alimentando dos cadáveres. A reportagem viu dois cachorros e algumas galinhas comendo corpos humanos em diferentes bairros.
Quando recolhidos, os cadáveres são tratados como lixo, levados em caminhões para grandes valas cavadas nos extremos da cidade. Têm o mesmo destino da sujeira que se acumula numa cidade que passou os últimos três meses em guerra.