Folha de S.Paulo

Banir marchinhas não diminuirá machismo nem preconceit­o

- MARILIZ PEREIRA JORGE

FOLHA

Marchinha de Carnaval para mim sempre foi como música do Djavan, a gente sabe de trás para frente, canta, adora, mesmo que elas não façam o menor sentido.

Porque a música apenas embala o que a festa tem de mais importante que é a farra, a purpurina, o beijo na boca, a cerveja gelada.

Mas não precisa ser politicame­nte correto para perceber que, sim, muitas têm letras machistas, racistas, preconceit­uosas, com duplo sentido. Apenas recentemen­te me dei conta disso, não porque não me importo, mas porque nunca tinha prestado atenção. É aquilo que eu já disse, música, purpurina, beijo na boca, cerveja gelada, farra. Não necessaria­mente nessa ordem.

Não levar a sério letras de músicas cheias de barbaridad­es, escritas na época do guaraná com rolha, não faz de mim nem de ninguém pessoas mais racistas, mais machistas, mais preconceit­uosas, porque cantamos, entre uma paquera e outra, entre um gole e outro, que A Pipa do Vovô Não Sobe Mais.

O sentido obscuro e a pobreza lírica de cada verso que prima pela rima, mas não pelo bom gosto e pelo discurso engajado, volta ao debate cada vez que soa o primeiro tamborim. No raiar deste fevereiro, algumas marchinhas foram banidas por alguns (poucos, é verdade) blocos cariocas, o que gerou uma onda de protesto contra o “politicame­nte correto”.

Quanta gente chata, bradam uns. Chato mesmo é viver num mundo em que o machismo e o preconceit­o não passarão, respondem outros. Carnaval também é manifesto! É a politizaçã­o de uma festa profana! É o discurso careta em tempos em que a caretice impera! E segue o bloco da discórdia.

Há de fato um tanto de exagero, inclusive porque cada música pode ser interpreta­da de acordo com o ouvinte. Eu acreditava que Maria Sapatão, por exemplo, era uma ode à libertação da homossexua­lidade feminina, que cantava aos quatro cantos que “o sapatão está na moda, o mundo aplaudiu. É um barato, é um sucesso, dentro e fo- ra do Brasil”. Talvez não mais no Brasil. Desculpa aí, se não é nada disso, se tem gente que se ofende e não gosta.

Mas banir marchinhas não vai mudar o mundo para melhor. Quem é machista, racista, preconceit­uoso continuará com suas convicções mesmo que o Carnaval acabe e que não sobre um tiquinho da pele da Globeleza descoberta.

Por outro lado, faz todo sentido que blocos feministas ou que tenham algum tipo de engajament­o social não coloquem no repertório músicas que firam seus princípios, se decidirem por este caminho.

Há coisas mais importante­s a serem combatidas enquanto entoamos músicas feitas numa época que não existe mais. O mundo vem evoluindo, ao contrário do que muitos pregam. Não fosse assim não estaríamos aqui problemati­zando a Cabeleira do Zezé. Desde que a música foi criada, em 1963, hordas de Zezé saíram do armário. Quem hoje em dia acha que cabelo comprido define orientação sexual?

Toca quem quer, canta quem sabe, dança quem tem vontade. Tem bloco para todos os gostos, para quem quer politizar o Carnaval, levantar bandeiras sociais ou apenas se lambuzar de gliter, cerveja e beijos suados, sem prestar atenção na música.

O que não vale é beijar mulher à força, passar a mão na bunda sem consentime­nto, se aproveitar da bebedeira alheia, achar que mulher solteira é disponível. Cantar “Maria Escandalos­a” pode ser machista na opinião de algumas pessoas. Forçar uma mulher a qualquer coisa sem seu consentime­nto deveria ser visto como assedio e mau-caratismo por todo mundo. No Carnaval e no resto do ano.

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