Folha de S.Paulo

Da peça à TV, ‘Roque Santeiro’ teve caminho rocamboles­co

Musical em cartaz foi censurado pela ditadura nos palcos e como telenovela

- LAURA MATTOS

“Roque Santeiro – O Musical”, muitos podem pensar, seria uma adaptação para o teatro da famosa novela da TV. É o contrário, na verdade.

Como grande parte da produção televisiva de Dias Gomes, o estrondoso sucesso de audiência levado ao ar pela Globo em 1985 é baseado em uma das peças teatrais que ele escreveu antes de ser contratado pela emissora em 1969.

Essa obra, aliás, tem bastidores rocamboles­cos como uma novela. O texto original, “O Berço do Herói”, é de 1963 (não era musical; a versão agora em cartaz foi criada depois da novela pelo próprio Dias Gomes). A inspiração veio de um caso verídico registrado por Euclydes da Cunha em “Os Sertões” (1902).

Na Guerra de Canudos (1896-1897), um cabo foi dado como morto e transforma­do em herói. Mas apareceu três dias depois, vivinho da silva.

Na peça, o falso herói é um cabo da Força Expedicion­ária Brasileira que teria morrido lutando contra os nazistas na Itália. Torna-se santo na sua terra natal, Asa Branca, que lucra com turismo e a venda de santinhos do militar.

O cabo, contudo, reaparece na cidade 15 anos depois. Havia desertado e vagara por bordéis da Europa. Sua volta coloca em risco a indústria em torno do mito, explorada por empresário­s e políticos.

Antonio Abujamra teve o destemor de montar a peça — crítica contundent­e aos militares assinada por um notório membro do Partido Comunista— em 1965, primeiro ano da ditadura militar no país.

A estreia estava marcada para as 21h30 do dia 22 de julho, no teatro Princesa Isabel, no Rio. Às 17h, a Censura proibiu o espetáculo.

Dez anos depois, em 1975, Dias Gomes apresentou à Globo a sinopse de “Roque Santeiro”, versão de “O Berço do Herói”. A inspiração na peça censurada era sigilosa, e, para evitar problemas, o autor mudou o protagonis­ta.

Em vez de cabo, seria um produtor de santos que teria morrido em uma batalha contra um bandido que ameaçava Asa Branca. A manobra foi descoberta pelo Serviço Nacional de Informaçõe­s por meio de um grampo feito em um telefonema de Dias Gomes.

A Globo nem desconfiav­a que teria problemas e anunciava sua primeira novela das oito em cores. Uma semana antes da estreia, a Censura, que já havia aprovado “Roque Santeiro” para as 20h, mudou de ideia. Resolveu liberá-la para as 22h, o que, na prática, inviabiliz­ava a exibição.

Nesse horário, ia ao ar “Gabriela”, que sofria com cortes dos censores e certamente não seria liberada para as 20h, em uma troca de horários com “Roque Santeiro”.

A Globo tentou de tudo para reverter a decisão. O “não” definitivo chegou na véspera da data de estreia, com 36 capítulos gravados.

Em 27 de agosto de 1975, quando “Roque Santeiro” entraria no ar, Cid Moreira leu um editorial no “Jornal Nacional” denunciand­o a censura. Era a primeira rusga pública entre a Globo e a ditadura.

A história do falso herói só seria exibida após a ditadura.

Em 1985, a Globo levou ao ar “Roque Santeiro” como uma marca do proclamado fim da censura. Foi a maior audiência da TV brasileira. O clima de festa da abertura política e do ibope ofuscaram o fato de a tesoura dos censores seguir afiada, cortando capítulos da novela, em defesa “da moral e dos bons costumes”. Era a Nova República, e, como Asa Branca, o Brasil precisava manter o mito. LAURA MATTOS

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