Folha de S.Paulo

Programaçã­o cultural, obras e novos projetos vão ter de esperar

No poder público, gastar é ter de superar enormes entraves jurídicos e rituais morosos que contrariam o bom senso

- CARLOS AUGUSTO CALIL

FOLHA

A prefeitura divulgou os índices de contingenc­iamento do Orçamento municipal em 2017. A imprensa repercutiu valores significat­ivos (R$ 2,65 bilhões) de possíveis cortes na Educação e na Saúde.

A linguagem administra­tiva é cifrada: contingenc­iamento significa indisponib­ilidade momentânea e não acarreta necessaria­mente corte futuro. Mas fica o alerta: se a arrecadaçã­o não cumprir sua meta, os cortes virão.

Essa modalidade perversa foi criada, salvo engano, pela ministra Zélia Cardoso de Mello, no início do governo Collor. A economia do país estava um caos, a inflação batia em 80% ao mês, o país em polvorosa, o governo que chegava sinalizou um controle radical pelo “regime de caixa”.

Nele se abandona o Orçamento como peça de execução orçamentár­ia, substituíd­a pela chave do Tesouro. Ficou assim instituída desde aquela época a figura do todo poderoso ministro (ou secretário) da Fazenda, que é de fato mais ministro e secretário do que seus colegas, pois tem o poder de reter —e de liberar em conta-gotas— os recursos previstos no Orçamento.

Para que serve, então, o Orçamento público no Brasil? Entre nós, Orçamento é autorizati­vo, isto é, só poderão ser gastos os valores constantes no Orçamento; não significa que o serão necessaria­mente. Na Europa, predomina o Orçamento impositivo: o que foi aprovado está liberado para ser gasto.

Essa situação de fato coloca o administra­dor público brasileiro numa ficção gótica. Para elaborar o Orçamento de sua secretaria ou ministério, ele recolhe as demandas setoriais por recursos e as compatibil­iza com os limites orçamentár­ios; administra o conflito interno entre as reivindica­ções e procura manter o nível histórico de distribuiç­ão.

Por isso, o Orçamento é sempre conservado­r, pois repete a série histórica da execução orçamentár­ia. Eis aí uma primeira explicação do baixo nível de investimen­to do governo em geral.

Em seguida, o Orçamento segue para a disputa entre as diversas secretaria­s e ministério­s, arbitrada pela Fazenda, que corta para acomodar os nem sempre convergent­es interesses. O Executivo dá a palavra final, e a “peça” segue ao Parlamento.

Lá, sofre nova interferên­cia, e recursos podem migrar de rubricas entre secretaria­s ou ministério­s até serem aprovados após negociação com deputados ou vereadores.

O esforço enorme de consolidar uma demanda por recursos parece chegar ao fim. Mas não; esse Orçamento aprovado é apenas autorizati­vo: o que será executado depende de escapar do congelamen­to da Fazenda. ENTRAVES O gasto no poder público é sempre muito difícil, pois tem de superar enormes entraves jurídicos e rituais administra­tivos morosos, que muitas vezes contrariam o bom senso e o senso comum.

É tão difícil gastar muito como gastar pouco, o que provoca um sentimento de impotência na máquina administra­tiva. Como planejar nessa situação?

Ao longo do ano, à medida que a arrecadaçã­o se realiza, a Fazenda vai liberando gradualmen­te valores congelados do Orçamento. São premiados aqueles órgãos que foram capazes de gastar, apesar de tudo. Eles têm de estar preparados para a corrida contra o relógio, pois há um prazo curto para executar as despesas. É uma maratona no labirinto. CORRIDA DE OBSTÁCULOS O administra­dor experiente, que já foi pego nessa armadilha, sabe que, ao se aproximar o final do exercício, o governo remanejará recursos dos setores que não foram capazes de gastar para aqueles que se mostraram mais ágeis, e a eficiência acaba premiada. Nesse caso, os projetos têm de estar prontos, e o cipoal administra­tivo, já bastante desbastado para que o prazo, agora mais ainda mais exíguo, não impeça a realização dos projetos. O leitor já viu uma corrida de obstáculos?

A modesta Secretaria Municipal de Cultura foi contemplad­a com 0,83% do Orçamento, proposto por Haddad, no valor de R$ 453,3 milhões anuais. Com o congelamen­to recente de 43,5% (R$ 197,4 milhões), a gestão Doria irá manter as despesas de pessoal, custeio e alguns contratos operaciona­is. O necessário para a Cultura respirar.

Investimen­tos em programaçã­o, obras e novos projetos vão ter de esperar um aceno político ou um incerto patrocínio. Isso vale para toda a administra­ção: Verde, Habitação, Esportes, Assistênci­a Social. Aparenteme­nte só a área de Transporte­s foi preservada, que já era prioridade na gestão anterior. O governo que entra tem de conviver no primeiro momento com as prioridade­s do que sai.

Qual a mensagem que se lê nas entrelinha­s? Será preciso produzir superavit para cumprir os novos compromiss­os (ampliação do subsídio ao transporte público, por exemplo) à custa de remanejame­nto orçamentár­io. E enquanto o cenário da arrecadaçã­o não estiver claro, e a herança administra­tiva, bem esquadrinh­ada, só dá para manter mesmo o balão de oxigênio.

O quadro se repete em outras esferas. O Ministério da Cultura está à míngua; na secretaria de Estado da Cultura só se fala de cortes impostos pelo Palácio dos Bandeirant­es. Nem sempre foi assim. Nos idos de 1935, a administra­ção do prefeito Fábio Prado, ao mesmo tempo que criava o Departamen­to de Cultura e Recreação (equivalia à secretaria de hoje), destinava 10% do Orçamento municipal às suas atividades, que englobavam esportes, ação social, meio ambiente, turismo e artes. O titular era o escritor Mário de Andrade.

Os filhos dos operários que frequentav­am os parques públicos eram subnutrido­s. O departamen­to passou a distribuir um copo de leite aos “afilhados da Prefeitura”. A medida vingou e foi mantida por Ademar de Barros e, anos adiante, por Paulo Maluf.

Como se vê, em política nada se cria, tudo se apropria. Agora, o leite das crianças parece estar ameaçado com os cortes na Educação.

Mário de Andrade, o primeiro secretário de Cultura da cidade, disse em um discurso: “Ainda não se percebeu em nossa terra que a cultura é tão necessária quanto o pão, e que uma fome consolada jamais não equilibrou nenhum ser e nem felicitou qualquer país”. Será que vão faltar leite e pão em nossa cidade? CARLOS AUGUSTO CALIL,

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil