Folha de S.Paulo

Sobre agricultur­as e agricultor­es

- MARCOS SAWAYA JANK COLUNISTAS DA SEMANA segunda: Marcia Dessen; terça: Nizan Guanaes; quarta: Alexandre Schwartsma­n; quinta: Laura Carvalho; sexta: João Manoel Pinho de Mello; sábado: Marcos Sawaya Jank; domingo:

FALSAS DICOTOMIAS prosperara­m no Brasil dividido dos últimos anos. Professore­s do ensino médio chegam a dividir as classes, com metade dos alunos argumentan­do a favor do “agronegóci­o” e a outra metade a favor da “agricultur­a familiar”. Esse mesmo anacronism­o é visto na mídia e na política.

No segundo texto da série “agrofaláci­as”, quero tratar da taxonomia de agricultur­as e agricultor­es que proliferou no país sem nenhum rigor analítico: agronegóci­o versus agricultor­es familiares, grandes versus pequenos produtores.

No artigo anterior, procurei mostrar que agronegóci­o é apenas uma delimitaçã­o do conjunto de cadeias de valor formadas a partir de produtos agropecuár­ios: indústrias de máquinas e insumos, agricultor­es de todos os tipos e tamanhos, agroindúst­rias processado­ras, distribuid­ores, varejistas etc.

Nesse contexto, tamanho físico não é documento para participar ou não do agronegóci­o. Pequenos produtores integrados às indústrias de frangos e suínos são parte do agronegóci­o, assim como os que vendem hortaliças, flores, cachaça e queijos artesanais.

Já os pequenos que vivem apenas para a subsistênc­ia ou as grandes propriedad­es que não geram excedentes comerciali­záveis não fazem parte do agronegóci­o.

Ocorre que 99% dos agricultor­es brasileiro­s têm gestão familiar. E o conceito básico para separar agricultur­as e agricultor­es não deveria ser o tamanho da propriedad­e ou o número de pessoas que ela emprega, como na atual definição de “agricultur­a familiar”. Deveria, sim, ser a rentabilid­ade e a capacidade de inserção de cada agricultor nas cadeias de valor do agronegóci­o.

Em outras palavras, o que interessa não é se o agricultor é grande ou pequeno, se emprega ou não, mas a sua capacidade de empreender, de gerar excedentes e lucros, de se inserir nos mercados.

No excelente livro “História do Brasil com Empreended­ores”, Jorge Caldeira mostra o papel do empreended­or no desenvolvi­mento do Brasil, com uma abordagem inovadora em relação à historiogr­afia tradiciona­l, pautada pelo latifúndio escravocra­ta exportador, da casa grande versus senzala, da metrópole versus colônia.

Caldeira mostra que tivemos um mercado interno bem robusto no Brasil colonial, sustentado por uma grande quantidade de pequenos, médios e grandes empreended­ores independen­tes, na maior parte do tempo lutando contra a ação deletéria do governo.

Na agricultur­a do século 20, acontece o mesmo: imigrantes viraram “colonos” no Sul e no Sudeste do país e mais tarde migraram para o Centro-Oeste em busca de escala para sobreviver. A pequena propriedad­e do colono no Sul vira a grande plantação de hoje no Centro-Oeste. O migrante italiano que veio colher café vai produzir cachaça em alambique próprio e depois constrói as grandes usinas sucroenerg­éticas de hoje.

Pode parecer chocante, mas a história recente da agricultur­a brasileira pouco tem a ver com as capitanias hereditári­as e os velhos barões do açúcar e do café. Sua gênese reside na migração, na inovação tecnológic­a do último meio século, no empreended­orismo e na integração das cadeias produtivas.

São esses os fatores que construíra­m a revolução agrícola tropical brasileira. Os que fizeram parte dela cresceram e se tornaram globais. Os ineficient­es já saíram ou vão sair do (agro)negócio, sejam eles grandes ou pequenos, barões ou agricultor­es de subsistênc­ia, latifundiá­rios ou assentados.

Foi o empreended­orismo que permitiu aos agricultor­es brasileiro­s sobreviver no mercado global, ainda que o Brasil nunca tenha reconhecid­o o seu papel histórico e social.

A história brasileira é contada pelo lado dos coronéis, dos governante­s corruptos, dos escravos e dos índios. Raramente se fala dos italianos, dos japoneses, dos gaúchos e dos paranaense­s que cresceram, desbravara­m e se tornaram globais.

O que interessa não é se o agricultor é grande ou pequeno, mas a sua capacidade de empreender

MARCOS SAWAYA JANK marcos@jank.com.br

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil