Folha de S.Paulo

Autoconten­ção

- OSCAR VILHENA VIEIRA COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Leão Serva; terça: Rosely Sayão; quarta: Francisco Daudt; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Oscar Vilhena Vieira; domingo: Antonio Prata

FAZER JUSTIÇA e impor sentenças não é uma tarefa fácil para quem exerce o poder. Não gera lealdades, nem angaria cooperação. Antes o contrário. Aqueles que se veem contrariad­os por uma sentença serão eternament­e ressentido­s com o seu algoz. Já quem é beneficiár­io de uma sentença favorável, não tende a ser grato. Afinal, se estava certo, só recebeu o que merecia.

Assim, dada a natureza ingrata e auto interessad­a do ser humano, como nos ensina Maquiavel, o melhor para o príncipe que tem a pretensão de exercer o poder de maneira estável é conceder a função de julgar a um corpo autônomo de funcionári­os, separados e independen­tes de sua corte. Ao soberano ficariam reservadas apenas aquelas prerrogati­vas generosas de anistiar e perdoar, com as quais pode obter a “eterna gratidão” dos “injustiçad­os”.

Como sustenta o cientista político Stephen Holmes, monopoliza­r o poder é muito contraprod­ucente e oneroso para qualquer soberano. Transferir problemas intratávei­s para os tribunais pode ser uma estratégia libertador­a, que permite ao príncipe se concentrar naquilo que mais lhe importa, que é obter a cooperação dos que contribuir­ão para a sua manutenção no poder.

Essa mesma lógica se aplica a outros temas indigestos que transcende­m a esfera penal. Tem sido cada vez mais comum, ao redor do mundo, que Legislativ­o e Executivo se abstenham de decidir questões encrespada­s, como aborto, uso de drogas, casamento entre pessoas do mesmo sexo, delegando aos juízes essas decisões. Dessa forma, não têm o ônus de se indispor com parcelas significat­ivas do eleitorado.

Talvez esse raciocínio nos ajude a entender porque o presidente Michel Temer (PSDB) não tenha exercido a sua prerrogati­va constituci­onal de indicar um substituto para o ministro Teori Zavaski logo após o seu trágico faleciment­o. O fato de que o sucessor do ministro Teori seria herdeiro necessário da relatoria da Lava Jato, colocaria o presidente na linha de fogo de todos aqueles que serão afetados pela operação. Por outro lado, um eventual naufrágio da operação, também lhe seria tributado. Assim, a melhor estratégia foi a autoconten­ção, deixando à Justiça as tarefas difíceis para as quais foi criada.

A forma surpreende­ntemente pacífica como a “designação algorítmic­a” do ministro Edson Fachin foi recebida por seus colegas de turma segue a mesma lógica. Sinaliza não apenas a confiança na imparciali­dade do ministro, mas também um certo alívio por não terem que tomar, individual­mente, decisões muito custosas. O sorteio, poderia eventualme­nte ter sido evitado. O artigo 68, parágrafo primeiro, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, oferece espaço para que, em casos excepciona­is, a escolha se desse de outra forma. Ninguém ousaria discordar que esse é um caso especial.

A operação Lava Jato, sob nova condução, retomará assim o seu curso natural, que será inevitavel­mente acidentado. Afinal, processar e julgar, de uma só vez, um número extraordin­ário de parlamenta­res seria um enorme desafio para qualquer tribunal do mundo democrátic­o. Não há porque esperar que as coisas sejam diferentes para o Supremo. A autoconten­ção presidenci­al, no entanto, deve colaborar para que esse processo não se torne ainda mais conturbado do que promete.

Transferir problemas intratávei­s para os tribunais pode ser uma estratégia libertador­a para um líder

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