‘Funk do gás’ converte nostalgia da música do caminhão em Carnaval
Se a nostalgia pudesse ser traduzida em música, a do caminhão de gás certamente entraria no páreo. Imagine, no entanto, que uma forte percussão a transformasse em uma música dançante capaz de mobilizar massas —não para comprar botijões de gás, mas para pular Carnaval.
Erguidos, os braços devem balançar vagarosamente de um lado para o outro, acompanhando o ritmo da música. O movimento se acelera, de um lado para o outro, mais rápido, mais rápido. A virada vem quando uma voz frenética grita: “Ó o gás!”, e a música ganha um beat por baixo. Finda a parte “clássica”, todos vão à loucura em seu momento de puro funk.
Um vídeo da nova versão musical com essa coreografia se disseminou na internet nos últimos dias. Desde seu surgimento, DJs começaram a tocar a música em festas e o canal Cartoon Network produziu um vídeo com personagens de um de seus desenhos mais psicodélicos, a “Hora da Aventura”, balançando ao som desse “Funk do Gás”, assim como fizeram os jogadores do time do Corinthians.
Até um rapaz em São Paulo tatuou um botijão com a expressão “Ó o Gás” no braço (resultado de uma aposta com amigos, segundo o tatuador, Raul Willian, 20). É uma concorrente a hit do Carnaval, disputando lugar com a disseminada “Deu Onda”.
“Escutava quando era criança”, diz o criador dessa versão, o estudante Alessandro Santos, 19, de Vitória da Conquista, na Bahia. “Quis fazer uma zoeira” e fez da memória de infância um funk.
A música estourou de fato quando o vendedor Renan Vinícius, 24, de Cubatão (56 km de São Paulo), gravou os amigos fazendo “a dancinha do gás” quando estavam todos “um pouco alegres”. Bagaceiro, como o Brasil gosta, o vídeo foi visualizado por mais de 3,3 milhões de pessoas.
Funcionou, claro, como propaganda para a empresa que disseminou a música, a Ultragaz. De olho na repercussão, também fez funcionários reproduzirem a coreografia para compartilhar vídeos.
Caminhões de gás começaram a usar músicas para sinalizar sua presença nas ruas, no lugar de buzinas, nos anos 1990. “Fiz a melodia para que tivesse um potencial de chamada, com um pico que se projeta muito longe, entre prédios, e um silêncio, em intervalos, com uma flauta”, diz o compositor, Hélio Ziskind, 61, alegre porque a nova versão mantém a música nas ruas.
Ela ainda tenta imitar o som metálico de botijões de gás batendo um contra o outro, aproximação feita com um sintetizador. Por fim, violinos “dão uma atmosfera afetiva a tudo”, criando uma chamada “mais lírica e menos militar”.
Na época, só um aparelho que tocasse a música em um chip, e não fitas cassetes, aguentaria reproduzi-la o dia todo. Sem música própria, concorrentes recorreram a uma já disponível em chips, em brinquedos de criança: “Für Elise”, de Beethoven, a outra grande música do gás.
Autor de “Para Elisa”, canção que brinca com o fenômeno (“Minha Elisa agora traz / Energia e muito gás”), o músico Luiz Tatit classifica a original, de Ziskind, como uma new age, que “fica no ouvido das pessoas pela repetição”. As notas demoradas e “o tempo espichado” são de músicas mais passionais ou que transmitem esperança, daí a sensação de saudade, observa ele.
Com a compra de botijões pelo telefone e pela internet, a necessidade de ter caminhões com a música diminuiu. O uso do jingle, então, “é um pouco administrado”, segundo o diretor da Ultragaz, Aurélio Ferreira. Ele diz que a empresa tem recebido pedidos de fantasias do mascote, um botijão —sinal de que ao menos a nova versão ocupará as ruas no Carnaval.