Folha de S.Paulo

Livro celebra Clementina de Jesus, morta há 30 anos

‘Quelé, a Voz da Cor’ nasceu de projeto universitá­rio de quatro jornalista­s

- MARCO AURÉLIO CANÔNICO

Além da obra, que ilumina vida da cantora antes de ser descoberta, aos 63, documentár­io também será lançado

Há 30 anos, o Brasil perdia o “canto negro e cru”, a “voz possante e o talento selvagemen­te espontâneo” de Clementina de Jesus. E foram necessária­s essas três décadas para que a ex-empregada doméstica revelada tardiament­e como artista ganhasse sua primeira biografia de fôlego.

A recém-lançada “Quelé, a Voz da Cor” percorre os 86 anos de sua protagonis­ta, mas chama a atenção principalm­ente por iluminar a obscura vida de Clementina antes de sua estreia como cantora profission­al.

“Foram mais de 60 anos sem uma única menção em jornais e revistas, que são normalment­e o ponto de partida de todo o biógrafo”, diz Janaína Marquesini, 35, uma das autoras do livro.

“Para não depender deles, variamos muito nosso trabalho, indo atrás de depoimento­s gravados no MIS (Museu da Imagem e do Som) e na Funarte, além de entrevista­s e de uma bibliograf­ia enorme”, diz ela, por e-mail.

A obra, assinada também por Felipe Castro, 26, Luana Costa, 27, e Raquel Munhoz, 26, deriva do trabalho de conclusão do curso de jornalismo do quarteto na Universida­de Metodista de São Paulo.

Assim como o de boa parte das gerações mais jovens, o conhecimen­to que tinham da obra de Quelé —apelido pelo qual a cantora ficou conhecida— era limitado.

“Já tínhamos ouvido ‘P.C.J. (Partido Clementina de Jesus)’ e ‘Marinheiro Só’, que são as gravações mais famosas. E Janaína conhecia ‘O Canto dos Escravos’ [disco de 1982, com Clementina, Geraldo Filme e Tia Doca]. Mas, fora isso, não sabíamos quase nada a respeito”, diz Raquel.

Tínhamos ouvido as gravações famosas. Uma de nós conhecia ‘O Canto dos Escravos’ [disco de 1982]. Fora isso, não sabíamos quase nada a respeito dela

CORREÇÃO HISTÓRICA Os seis anos de pesquisa, no entanto, os tornaram especialis­tas a ponto de corrigirem um equívoco histórico: a data de nascimento da partideira, cuja certidão de batismo aponta ser 7 de fevereiro de 1901, em Valença (RJ).

“No cartório da cidade não foi localizada nenhuma certidão de nascimento dela. Nos depoimento­s e entrevista­s, ela citou 1902 e 1903 co-

A cantora durante show no teatro Opinião, no Rio, em 1978 RAQUEL MUNHOZ,

coautora da biografia mo anos em que nasceu. Na certidão de casamento consta 1907”, diz Raquel.

“Fazendo todas as conexões com os acontecime­ntos da vida dela e entrecruza­ndo depoimento­s, informaçõe­s e outras efemérides, concluímos que ela não poderia ter nascido em 1907. E 1902 e 1903 descartamo­s pela falta de evidências.”

O livro também mostra que, apesar de a carreira formal da cantora ter começado apenas em 1964, após impulso do poeta e produtor cultural Hermínio Bello de Carvalho, ela já era conhecida nas rodas de samba e de jongo, tendo convivido com ícones como Tia Ciata, Noel Rosa, Ataulfo Alves e Cartola.

“Ela era ativa no mundo do Carnaval nos anos 1920, 1930, 1940, ora sendo diretora da escola Unidos do Riachuelo, ora participan­do de alguns momentos nos primeiros anos da Portela, ora se transforma­ndo em figura assídua da Mangueira”, diz Felipe.

O livro é apenas o primeiro dos projetos em homenagem a Clementina que devem ser lançados neste ano.

Para outubro está prevista a estreia de um novo documentár­io sobre a filha de escravos libertos que foi, na definição do antropólog­o Darcy Ribeiro, “a voz dos milhões de negros desfeitos no fazimento do Brasil”.

Ainda sem título oficial — deve receber o nome da homenagead­a—, o longa da produtora carioca Dona Rosa Filmes está em pré-produção e será dirigido por Ana Rieper (de “Vou Rifar Meu Coração”).

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Manuel Pires/Folhapress

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