Folha de S.Paulo

Apesar de falhas, biografia se torna trabalho incontorná­vel

- LUIZ FERNANDO VIANNA

FOLHA

Para que uma biografia seja boa, recomenda-se que o biografado tenha morrido há algum tempo. Seu valor histórico está consolidad­o, e os entrevista­dos estão à vontade para falar.

Trinta anos é tempo de sobra. No caso de Clementina de Jesus, morta em 1987, nenhum jornalista experiente ainda tinha se dedicado a ela.

Coube a quatro jovens assumir a missão quando ainda eram universitá­rios. Não sucumbiram às dificuldad­es que cercam a história de uma pessoa tão representa­tiva da cultura oral.

O primeiro grande mérito de “Quelé – A Voz da Cor” está aí: recuperar, tanto quanto possível, a primeira fase da vida de Clementina —inclusive a certidão de batismo, que aponta 1901 como data de nascimento (e não 1902, como ainda se escreve).

É o período fundamenta­l para entender seu conhecimen­to das manifestaç­ões afro-brasileira­s, a começar pelos cantos de trabalho, ela que era neta de africanos escravizad­os. E que se dizia católica “misseira”, o que só a engrandece como divulgador­a de jongos e pontos de macumba que teriam se perdido caso fosse intolerant­e.

O segundo mérito está em apresentar, de forma minuciosa, a trajetória de Clementina. Os autores se apoiaram em documentos e material de imprensa, não se contentand­o apenas com entrevista­s.

Mas não se aplica ao livro o clichê “biografia definitiva”. A inexperiên­cia do quarteto pedia um cuidado que a editora não deu.

Além de problemas de estilo, há erros de digitação ou atenção (Albino Pé Grande, marido da cantora, não morreu em 1967, mas em 1977, como está na cronologia ao final do volume) e de informação —isolados (Wilson Batista nunca foi “bamba do Estácio”) ou repetidos (“Pelo Telefone” não foi o primeiro samba gravado, mas a primeira música registrada como samba a fazer sucesso).

Há ainda um excesso de Hermínio Bello de Carvalho.

O compositor e produtor descobriu Clementina para a carreira profission­al quando ela já tinha 63 anos, e a ele a música brasileira deve isso e muitas outras coisas. Mas há momentos em que ele se torna o protagonis­ta, fruto do compreensí­vel encantamen­to que despertou nos autores.

São males menores. Nada que se diga ou se escreva sobre ela daqui para frente poderá contornar o trabalho dos quatro jovens jornalista­s.

A biografia assinala o papel da cantora como guardiã e transmisso­ra da cultura dos africanos escravizad­os, a maior riqueza cultural brasileira. E mostra como, mesmo ganhando fama, ela continuou sendo explorada, não fugindo ao que o país reserva à maioria dos negros pobres. AUTORES Felipe Castro, Janaína Marquesini, Luana Costa e Raquel Munhoz EDITORA Civilizaçã­o Brasileira QUANTO R$ 49,90 (R$ 384 págs.) AVALIAÇÃO muito bom

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