Folha de S.Paulo

‘Silêncio’ une fé e apostasia, e resultado é um milagre

- MARCELO MIRISOLA

FOLHA

Missionári­os católicos no Japão feudal, século 17. Parece que alguma coisa está fora do lugar.

Em princípio fica difícil desvincula­r o cristianis­mo do patrimônio histórico e geográfico do Ocidente. Depois fica mais difícil falar, especular sobre e/ou conciliar cristianis­mo com a cultura japonesa.

O estranhame­nto provocado por esses deslocamen­tos já vale como personagem e atiça a curiosidad­e do mais insensível dos apóstatas.

“Silêncio” é um livro genial que aproxima fé de apostasia. E, creia, leitor do século 21, falamos de um encontro que é o oposto do que a blasfêmia poderia sugerir.

Shusaku Endo, o autor, divide a narrativa com as missivas do padre Sebastião Rodrigues. Subliminar­mente temos um terceiro narrador que é a negação da crença; Judas redivivo, a traição enfim.

A tese de Endo (um paradoxo falso) instila no leitor a ideia de que a apostasia seria a única chance de a fé florescer e/ou adaptar-se diante do “charco” (leia-se Ocidente versus Oriente) que é o solo japonês, onde vicejam outras espécies de ervas mais daninhas, ameaçadora­s e contraditó­rias que o cristianis­mo.

Diz Jesus no Evangelho de Marcos, 16:15-20: “Ide pelo mundo inteiro e anunciai o Evangelho a toda criatura!”.

Ide se for o caso até o coração do budismo beligerant­e japonês do século 17 e pregai o evangelho para ver o que acontece. Prazer imenso em escrever “budismo beligerant­e”, e isso não é retórica. “Silêncio” é ficção baseada na mais cruel realidade.

Havia rumores de que Cristóvão Ferreira, mentor dos padres Sebastião Rodrigues e Francisco Garpe, apostatara. Aquilo que parecia estar fora do lugar começa a fazer sentido. Os padres Rodrigues e Garpe tomam o evangelho ao pé da letra e partem para o Japão em busca de Ferreira, missionári­o de fé inabalável, estandarte da Igreja Católica e exemplo a seguir.

No Japão, Garpe e Rodrigues são separados por força das circunstân­cias, e o desti- no do herói, missivista, narrador e candidato ao “martírio glorioso” não é muito diferente do destino de Ferreira —nada mais, nada menos que a apostasia. Como se a tese de Endo tivesse ido além da intenção inicial, e defluísse numa espécie de cristianis­mo de resultados.

Sob a perspectiv­a histórica, a apostasia dos missionári­os teve o efeito paradoxal de fertilizar o “charco” japonês. A mensagem e o sangue do Cristo continuam acudindo e vertendo, não importa se por meio de martírios santificad­os ou de arranjos não muito gloriosos. “Silêncio” transcende a literatura e as religiões. É, mais do que uma obra-prima, um milagre. MARCELO MIRISOLA AUTOR Shusaku Endo TRADUÇÃO Mário Vilela EDITORA Tusquets QUANTO R$ 36,90 (272 págs.) AVALIAÇÃO ótimo

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