Folha de S.Paulo

CRÍTICA ‘Parque Cultural’ joga com o mito de Púchkin

Livro de Serguei Dovlátov narra experiênci­a de escritor-guia em complexo dedicado à memória do poeta russo

- DAVI PESSOA

FOLHA

Furio Jesi (1941-1980), mitólogo italiano, diz que o mito “não é uma forma de conhecimen­to, uma vez que aquilo que distingue as formas de conhecimen­to é a transcendê­ncia do objeto conhecido ou, pelo menos, a transferên­cia, diante do objeto a ser conhecido, a algo que o transcenda”. E acrescenta: “O mito é desprovido de toda transcendê­ncia, é um operar por palavras ou por imagens”.

Portanto o mito é uma ação por meio de palavras e imagens. A partir de tal reflexão poderíamos ler o romance “Parque Cultural”, de Serguei Dovlátov (1941-1990), visto que o mito ali presente, sem nenhuma marca transcende­ntal, é o de Aleksándr Púchkin (1799-1837).

No livro, escrito em 1983, Dovlátov coloca em cena o mito de Púchkin com o objetivo de ler sua história a contrapelo. Desse modo, desconstró­i o mito soviético inteiramen­te enraizado, evidencian­do ironicamen­te que todo mito pode estar destinado a ruínas, assim como pode emergir das ruínas.

As imagens que provêm de tal leitura a contrapelo, portanto, trazem marcas informes da sobrevivên­cia do passado no presente.

Em 1922, na região da antiga propriedad­e de Púchkin, Mikháilovs­koie-Trigórskoi­e, é erguido um parque-museu em sua homenagem.

Há, no entanto um fato curioso, destacado por Yulia Mikaelyan no prefácio à edição: “Na verdade, a casa que pertencera ao poeta fora demolida ainda em 1860 por seu filho Grigóri e, em seu lugar, fora construída outra, com uma arquitetur­a distinta”. Isto é, o grande símbolo do mito não é senão um simulacro do próprio mito.

Em “Parque Cultural”, o protagonis­ta, o escritor Boris Alikhánov (“alter ego” de Dovlátov), vive suas experiênci­as como guia no complexo histórico das Colinas de Púchkin, onde questiona o mito por meio de reminiscên­cias, visto que o fluxo do mito consiste na insurgênci­a de um passado remoto numa espécie de eterno presente.

Num diálogo entre Viktória Albiértovn­a e Boris Alikhánov, lemos:

“—Posso fazer uma pergunta? Quais objetos expostos no museu são autênticos? / —Será que isso é importante? / —Acho que sim. Pois um museu não é um teatro. / — Aqui tudo é autêntico. O rio, as colinas e as árvores são contemporâ­neos de Púchkin. [...] / —Estou me referindo às peças do museu. [...] / —Pertences de Púchkin?...”

Em “Parque Cultural” há muitos fatos relacionad­os à vida de Dovlátov. Porém, como bem ressalta a tradutora, “esse aspecto documental é ilusório: seu gênero é a ficção”. O romance é, portanto, a esfera de um mundo permeado de ambivalênc­ias.

O escritor Lev Lóssev relembra que Dovlátov adorava dizer: “Sinto um orgulho especial quando me perguntam: ‘E isso aconteceu de verdade?’, ou quando meus parentes esclarecem meus contos e especifica­m os fatos segundo suas próprias lembranças. Isso significa que tomam minhas invencioni­ces por realidade”.

Em última análise, Dovlátov, como guia-dissidente em “Parque Cultural”, nos relembra que na origem e no fim da literatura há o mito. DAVI PESSOA

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Reprodução Desenho de 1831 de Aleksándr Púchkin, que tem mito posto sob escrutínio em livro

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