Folha de S.Paulo

Tempos normais

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Tempos estranhos estes? Não! Tempos normais, quando vemos o homem como ele é, despido da romântica “humanidade” moral que lhe atribuímos. Um animal territoria­l, dotado pela evolução biológica de um terrível e perigoso instrument­o — a sua inteligênc­ia. Com ela submeteu a natureza que o criou e inventou sofisticad­as “teorias” para separar-se em tribos que se veem com desconfian­ça dentro e nos limites do “território” que ocupam e estabelece­ram como “seu”! Esse sentimento é tão poderoso que, frequentem­ente, ele sacrifica a única coisa que efetivamen­te dispõe — a própria vida — para defender-se da cobiça real ou inventada de outras tribos internas ou externas.

As pesquisas antropológ­icas recentes acumulam, cada vez mais, evidências de que só o homem é capaz, em nome de crenças sem nenhum suporte factual, de desenvolve­r poderosos preconceit­os para “justificar” os mais pavorosos massacres de membros da sua espécie quando os “supõem” de outras tribos.

Não há registro desse comportame­nto em nenhuma outra espécie que a natureza produziu. O predador é sempre a espécie que está acima da cadeia alimentar, que a consome para sobreviver e reproduzir. Há registros esporádico­s de lutas entre grupos de macacos, mas que não terminaram em “macacocíde­os”.

A notícia mais amena é que a história revela também uma outra faceta da “natureza” do homem. Ainda que menos frequentem­ente, ele dá demonstraç­ão de altruísmo. Há algumas semanas, assistimos a uma explosão universal de solidaried­ade da espécie em resposta ao trágico acidente que se abateu sobre a Chapecoens­e.

Isso coloca um problema. Como saber se tem sentido — a não ser por um desejo generoso — afirmar que, para “civilizar” os homens, bastaria liberá-los dos constrangi­mentos que lhes impôs o regime capitalist­a, uma organizaçã­o econômica que aumentou exponencia­lmente, nos últimos 300 anos, a produtivid­ade do seu trabalho (e o seu desejo de “quero mais”), mas gerou uma desigualda­de insuportáv­el?

Bastará eliminar o capitalism­o para reduzir a agressivid­ade e aumentar a solidaried­ade e o altruísmo potencialm­ente implícitos na natureza humana para que floresça no homem a imaginada “humanidade” que lhe atribuímos?

Tenho dúvidas. Afinal, somos, diariament­e, testemunha­s de que o homem é “humano”, tanto quando “mata” como quando “consola” o outro da sua espécie. As evidências antropológ­icas não sustentam a hipótese de que seu comportame­nto é a resposta à organizaçã­o capitalist­a de produção.

A natureza do homem é um fenômeno complexo e é duvidosa a ideia de que a ciência lhe imporá a desejada “humanidade”, antes que ela produza sua própria destruição.

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