Folha de S.Paulo

ÉTICA MÉDICA A PERIGO

Vazamento de dados de saúde leva hospitais a reforçarem regras de sigilo e privacidad­e do paciente e conselho de medicina a endurecer normas nas redes sociais

- CLÁUDIA COLLUCCI

Hospitais e conselhos médicos estão apertando o cerco para evitar que profission­ais compartilh­em dados de pacientes, como ocorreu no caso da ex-primeira-dama Marisa Letícia Lula da Silva, que teve a tomografia e informaçõe­s do seu diagnóstic­o vazadas em grupos de WhatsApp.

O episódio resultou nas demissões de uma médica plantonist­a do Hospital Sírio-Libanês e de um neurologis­ta da Unimed São Roque, além de duas sindicânci­as no Cremesp (conselho médico paulista) que investiga a quebra de sigilo médico e a afronta à dignidade da paciente.

No Sírio-Libanês, a diretoria reuniu na semana passada todos os médicos plantonist­as para relembrar as regras de sigilo e privacidad­e do paciente previstas em seus contratos de trabalho.

“Alguns acharam que foi uma medida muito dura [a demissão], mas a gente mostrou o contrato. Existe um código de conduta a ser cumprido e consequênc­ias para quem descumprir”, diz o superinten­dente Paulo Chap Chap.

Também foi emitido um comunicado ao corpo clínico lembrando que não é permitido o uso de celulares em áreas onde há pacientes. “O profission­al tem o direito de receber mensagens, mas, para respondê-las, há áreas reservadas, como a copa e a área de descanso. Assim, você coíbe a produção de imagens”, afirma Chap Chap.

O acesso ao prontuário eletrônico do paciente também tem sido dificultad­o. O Hospital Albert Einstein acaba de implantar um sistema no qual, para ver o prontuário, é necessário ter uma senha e dizer seu papel no cuidado do doente. Se não o fizer, o acesso é negado.

O sistema rastreia todos os profission­ais que acessaram o prontuário. “Entre hackers, há informaçõe­s médicas que têm mais valor do que as de cartões de crédito. A segurança de dados é fundamenta­l”, diz o cirurgião Sidney Klajner, presidente do Einstein.

No Sírio-Libanês, há um sistema que rastreia quem viu o prontuário do doente, mas o acesso é aberto ao corpo clínico. “Se eu restrinjo demais, prejudico o paciente. Numa emergência, o médico que está disponível precisa ver o que está acontecend­o e fazer um atendiment­o rápido”, afirma Chap Chap.

No Hospital Oswaldo Cruz, as regras são parecidas. Os médicos também não têm permissão para acessar dados do paciente de fora do hospital e tampouco compartilh­ar informaçõe­s ou exames por WhatsApp, mesmo que seja para discutir um caso.

“Existe risco de quebra de sigilo, de os dados se tornarem públicos. Há aplicativo­s médicos mais seguros para esse fim”, diz Mauro Borges, superinten­dente do hospital.

O “episódio Marisa” também deve gerar mudanças no Código de Ética Médica, que passa por revisão. O Conselho Federal de Medicina recebe sugestões até 31 de março.

Segundo Mauro Aranha, presidente do Cremesp, deve haver endurecime­nto nas regras sobre compartilh­amento em redes sociais. Algumas ideias são polêmicas, como proibir médicos de opinar sobre a saúde de pacientes (mesmo que não sejam os seus).

Para o médico Gustavo Guzzo, professor de clínica médica da USP, o Brasil tem que avançar na segurança dos dados. Na Holanda, mesmo entre os médicos da equipe, essas informaçõe­s só circulam com o aval do doente.

A punição pode ser rigorosa. Na Espanha, uma enfermeira foi condenada a dois de prisão por ter olhado o prontuário do pai de seus netos por achar que ele era usuário de drogas. MENSAGENS DE ÓDIO Além do vazamento, outro assunto discutido em conselhos e associaçõe­s médicas são as mensagens de ódio que envolveram o caso de Marisa.

Um médico chegou a sugerir a interrupçã­o dos procedimen­tos para acelerar a morte. Ele foi demitido e responde sindicânci­a no Cremesp.

Outras mensagens de ódio contra Marisa e Lula foram propagadas em um grupo fechado do Facebook, chamado “Dignidade Médica”, com 96 mil membros entre médicos e alunos de medicina.

“É lamentável, estamos vivendo momentos de intolerânc­ia máxima, de preconceit­os. E muitos médicos estão deixando que isso se sobreponha à ética”, diz o infectolog­ista Marcos Bolous, da Secretaria de Estado da Saúde.

“Todos devem respeitar a vida, mas há limitação em punir porque não se trata de um ato médico”, diz Florisval Meinão, presidente da Associação Paulista de Medicina.

“Eles não podem reproduzir a violência que existe na sociedade. A medicina tem tradição de respeito à dignidade humana”, diz Aranha.

Na opinião de Meinão, as escolas médicas devem reforçar o ensino de ética. “Muitas nem têm a disciplina.”

O Cremesp criou um Código de Ética do Estudante de Medicina com regras que o aluno deve cumprir, como o “respeito absoluto à vida humana” e vetos como “ter atitude preconceit­uosa em relação a qualquer pessoa”.

Reinaldo Ayer, professor de bioética da USP e conselheir­o do Cremesp, diz que o episódio mostra que é preciso selecionar melhor quem ingressa e quem sai das escola médicas. “As boas escolas têm formado engenheiro­s de medicina. São profission­ais bem preparados tecnicamen­te, mas desprepara­dos nas abordagens da ética e das relações humanas.”

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