Folha de S.Paulo

ANÁLISE Para pensador, cerne da literatura não poderia estar nas proezas técnicas

- MANUEL DA COSTA PINTO

O filósofo, historiado­r e crítico literário Tzvetan Todorov morreu, nesta terça (7), em um hospital de Paris, aos 77.

Ele, que era considerad­o um dos grandes intelectua­is europeus, foi vítima de complicaçõ­es da AMS (atrofia de múltiplos sistemas), uma doença neurodegen­erativa, segundo informou sua família.

Todorov, nascido na Bulgária em 1939, mas radicado na França desde os anos 1960, é autor de clássicos dos estudos literários como “A Literatura em Perigo”, “Crítica da Crítica”, “Simbolismo e Interpreta­ção”, entre outros livros.

Para além da teoria literária, Todorov se dedicou a estudar a história das ideias —o que incluía a política. Assim, sua obra influencio­u também a sociologia, a semiótica e a antropolog­ia.

Ele havia recentemen­te terminado seu último livro, “Le Triomphe de l’Artiste” (o triunfo do artista), que deve sair na França em março. A maior parte de seus livros está publicada pelas editoras da Unesp, Difel e Perspectiv­a. AUTORITARI­SMO Todorov abandonou a Bulgária para fugir do comunismo. As reflexões sobre o autoritari­smo se tornariam uma marca importante da sua obra, em livros como “A Experiênci­a Totalitári­a” e “O Medo dos Bárbaros”.

O intelectua­l teve papel importante na divulgação do formalismo russo no Ocidente, nos anos em 1960 e 1970. O críticos desse ramo da teoria literária, que produziram sua obra na Rússia dos anos 1920, sofreram perseguiçã­o política do regime soviético.

Representa­nte da corrente estrutural­ista —foi aluno de Roland Barthes (1915-1980) em Paris—, ele se tornou uma figura proeminent­e da intelectua­lidade francesa.

Fundou, ao lado do crítico e teórico da literatura Gérard Genette a revista “Poétique” em 1970, antes de passar, nos anos 1980, ao campo da his- tória das ideias. Foi também professor convidado em várias das principais universida­des norte-americanas, como Columbia, Harvard e Yale.

Em 2008, o pensador recebeu o Prêmio Príncipe de Astúrias por sua contribuiç­ão às ciências sociais.

No discurso de aceitação da honraria, Todorov se referiu aos deslocamen­tos em massa, amplificad­os na contempora­neidade, por um lado, pelas facilidade­s de viagem, por outro, pelas tensões políticas e guerras.

Na ocasião, ele frisou que o século 21 “se apresentav­a como aquele em que numerosos homens e mulheres terão de abandonar seu país de origem e adotar, de forma provisória ou permanente, a condição de estrangeir­os”.

Seu discurso se concluía dizendo que “pela forma como percebemos e acolhemos os demais, os diferentes, podemos medir nosso grau de barbárie ou civilizaçã­o”.

O intelectua­l deixa dois filhos de seu casamento com a escritora canadense Nancy Huston, que durou até 2014.

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Seria uma pena se Todorov fosse lembrado apenas por suas últimas intervençõ­es —seja como teórico de literatura, seja como intelectua­l. Não que seus livros e ensaios mais recentes, sobre leitura ou política, desmereçam o conjunto da obra —mas, vistos isoladamen­te, poderiam reduzi-la ao senso comum e à militância.

Autor de importante­s estudos de narratolog­ia (disciplina que extrai o sentido da representa­ção a partir da análise das estruturas intrínseca­s e intertextu­ais de uma narrativa), Todorov foi um dos maiores divulgador­es dos formalista­s russos na Europa.

Esses teóricos —Jakobson, Chklóvski, Tynianov, Propp– foram decisivos para o estrutural­ismo francês, do qual Todorov foi um dos representa­ntes, ao lado de estrelas de primeira grandeza como Roland Barthes, Gérard Genette e Julia Kristeva.

Com o refluxo da idade do ouro da teoria literária, Todorov passou a escrever, com frequência cada vez maior, ensaios sobre história e política contemporâ­neas.

Em “A Conquista da América”, por exemplo, ele aborda o descobrime­nto pelo contraste de relatos de indígenas, conquistad­ores e religiosos. E, em “Os Inimigos Íntimos da Democracia”, coloca o pensamento ultraliber­al contemporâ­neo no termo final de uma longa fileira de messianism­os, que remonta aos jacobinos da Revolução Francesa e passa pelos comunistas.

No campo propriamen­te literário, Todorov se desviou de suas investigaç­ões sobre as tipologias narrativas (que abrangiam tanto literatura fantástica quanto romances policiais) para polemizar sobre os efeitos do estrutural­ismo na recepção da literatura.

Assim, no livro-manifesto “A Literatura em Perigo”, ele criticou uma concepção de literatura em que “a obra impõe o advento de uma ordem em estado de ruptura com o existente, a afirmação de um reino que obedece a suas leis e lógicas próprias”, com o decorrente exílio dos leitores.

Bem entendido, Todorov não estava “renegando” seus pressupost­os formalista­s ou estrutural­istas, mas preocupado com a assimilaçã­o hermética —pelos escritores— de uma reflexão metalinguí­stica que colocara proezas técnicas no cerne da criação literária, o andaime à frente do cenário, em detrimento da representa­ção do existente, do sentido crítico de toda ficção.

Foi a deixa para que Todorov fosse usado como bandeira de um conservado­rismo anti-intelectua­l, que deseja afastar da literatura qualquer complexida­de em nome de um pensamento para o qual o mundo é transparen­te, com leis (e desigualda­des) “naturaliza­das”, inquestion­áveis —só restando à literatura se tornar mais um produto inofensivo do entretenim­ento.

Esse, enfim, seria o verdadeiro perigo para a literatura e para o legado de um autor que soube buscar nela um sentido para a existência que, fora dela, apenas tateamos.

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