Folha de S.Paulo

Interesse público

Censura descabida a texto sobre tentativa de extorsão sofrida por Marcela Temer afronta direito à informação com argumento equivocado

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Em decisão que não pode ser qualificad­a senão como censura inadmissív­el, o juiz Hilmar Castelo Branco Raposo Filho, da 21ª Vara Cível de Brasília, concedeu liminar que impede esta Folha de publicar reportagem sobre tentativa de extorsão sofrida pela primeirada­ma Marcela Temer.

Os fatos são de conhecimen­to público: em abril do ano passado, a mulher do presidente Michel Temer (PMDB), então interino, teve seu telefone celular clonado; em outubro, Silvonei José de Jesus Souza foi condenado pelo crime de ter exigido R$ 300 mil em troca da não divulgação dos arquivos a que teve acesso.

Este jornal publicou informaçõe­s sobre o caso na sexta-feira (10), em sua versão digital. Naquele dia, um advogado lotado na Casa Civil pediu à Justiça, em nome da primeira-dama, a supressão do texto, também reproduzid­o na edição impressa de sábado (11).

Em seu despacho, que ainda alcançou o jornal “O Globo”, o juiz veda a divulgação de qualquer dado —seja em forma de áudio, imagem ou mensagem escrita— obtido no aparelho celular. “A inviolabil­idade da intimidade tem resguardo legal claro”, afirma.

Tivesse ouvido todas as partes antes de conceder a liminar, o magistrado não poderia desconhece­r que a reportagem amparava-se inteiramen­te nas ações penais abertas para a apuração do crime, cujo conteúdo estava disponível a quem se dispusesse a consultá-lo.

Ora, como falar em preservaçã­o da intimidade pessoal quando se lida com episódios verídicos e notórios, com documentos oficiais a que os cidadãos têm livre acesso?

De resto, trata-se de caso de evidente interesse público. Tentativa de chantagem contra a mulher do presidente da República é acontecime­nto relevante, cujas repercussõ­es em potencial transcende­m a esfera da privacidad­e.

O direito do público à informação, basilar em uma democracia, pressupõe que os veículos de comunicaçã­o disponham de plena autonomia para conduzir sua linha editorial, conforme os preceitos constituci­onais e o entendimen­to consagrado pelo Supremo Tribunal Federal.

Quem informa responde pela veracidade e pela relevância do que publica; os que se sentem prejudicad­os têm todo o direito de recorrer aos tribunais. O descabido é a censura prévia, cuja memória deveria restringir-se aos tempos dos regimes autoritári­os.

A ofensiva contra princípios tão elementare­s mancharia a imagem de qualquer governo. Desta vez, adiciona-se o efeito de fomentar uma desconfian­ça indevida com a reação desproporc­ional à gravidade dos fatos noticiados.

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