Folha de S.Paulo

Autor não deixou instruções a respeito de inéditos

-

DE BUENOS AIRES

A celeuma sobre a conveniênc­ia de publicar obras de um autor já morto faz pensar no caso clássico de Franz Kafka (1883-1924).

Ele deixou instruções claras a seu amigo Max Brod de que destruísse tudo que ele não tinha ainda publicado, incluindo “diários, manuscrito­s, cartas e rascunhos”. Brod não obedeceu —e vieram a público obras celebradas como “O Processo”.

No caso de Bolaño, não se conhecem orientaçõe­s do autor sobre a destruição de nada. Aqueles que acham que sua viúva, Carolina López, estaria se aproveitan­do indevidame­nte do legado do escritor chileno o fazem com base no fato de que obras como “O Espírito da Ficção Cientifica” ficaram inéditas por mais de 30 anos.

Por outro lado, há os que defendem que tudo seja editado, como a editora norteameri­cana Valerie Miles, da revista Granta.

“Se ele quisesse mesmo que sua obra não fosse publicada, teria deixado instruções para que fosse destruída, porque esteve doente muito tempo e poderia ter tomado essa decisão.” amigos, o escritor havia se separado de López e passou os últimos anos com outra companheir­a. Herralde diz que a viúva o havia colocado numa “lista negra” porque ele e alguns amigos faziam parte do grupo de pessoas íntimas a quem Bolaño apresentav­a Carmen Pérez de Vega como sua namorada.

Foi Pérez de Vega quem acompanhou o autor de “Os Detetives Selvagens” no final da doença hepática de que sofria desde 1992 e quem o levou ao hospital onde, após dez dias esperando por um transplant­e de fígado que não veio, ele morreu, aos 50 anos.

Em entrevista à Folha ,em Guadalajar­a, o agente literário Andrew Wylie, que representa o espólio literário de Bolaño, considera a disputa “um caso encerrado”. “Ainda que ele tenha vivido separado de López nos últimos anos, ele a elegeu como a pessoa que cuidaria de seu legado após sua morte. Portanto, o que ela disser que deve ser publicado será publicado.”

E acrescento­u: “A obra de um autor é como a propriedad­e de uma pessoa. O sujeito trabalha, compra uma casa e cria ali sua família. Quando ele morre, a casa pertence à família. Não interessa que depois apareça um vizinho e diga que, porque beijou uma vez o proprietár­io, ele tenha algum direito sobre a herança. Se ele designou López como herdeira, não quero saber de suas outras relações”.

Na verdade, o que a celeuma ilustra é também uma das particular­idades da obra deste autor, que por seu estilo já foi comparado ao argentino Julio Cortázar (1914-1984).

Bolaño começou a escrever aos 17, mas começou a publicar apenas a partir dos 43.

Filho de uma família de classe média baixa, sempre sobreviveu à custa de trabalhos modestos: lavando pratos ou sendo garçom, coletor de lixo e até guarda noturno.

Fez uma viagem de ida e volta do México ao Chile pedindo carona e fazendo alguns trechos em caminhões. Seu escritório de trabalho na Espanha não possuía calefação e ele ainda assim atravessav­a as madrugadas de inverno escrevendo ali.

Apenas durante seus últimos sete anos teve a vida de um escritor famoso, convidado com luxos a viajar a festivais e palestras.

Morreu em 2003, o que significa que já acumula mais tempo famoso como escritor póstumo. E, detalhe importante, o arquivo que deixou inédito correspond­e a mais de 14 mil páginas.

Por conta disso, alguns defendem que se respeite essa caracterís­tica da obra de Bolaño. Um deles é seu amigo, o também escritor Bruno Montané: “É tempo de deixar de discutir sobre a poética do inacabado quando se fala de Bolaño. Temos que reconhecer que seus escritos estão do jeito que estão.”

Já o crítico mexicano Christophe­r Domínguez Michael crê que a discussão serve também para lembrar que sempre houve um aspecto comercial por trás da produção literária e, portanto, não se deveria crucificar a viúva por estar lançando seus inéditos.

“Não podemos ignorar que, ao menos desde os tempos de Balzac, o romance está ligado ao comércio.”

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil