Folha de S.Paulo

O legado

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SÃO PAULO - Reportagem de Sylvia Colombo na “Ilustrada” descreveu a celeuma em torno da publicação de “O Espírito da Ficção Científica”, de Roberto Bolaño, que opõe familiares a amigos do autor chileno morto em 2003. Para resumir uma história complicada, discute-se como interpreta­r as disposiçõe­s de um escritor sobre seu legado e até que ponto devem ser respeitada­s.

O caso paradigmát­ico quando o assunto são direitos morais é o de Franz Kafka (1883-1924). Ele deixou instruções claras para que Max Brod, seu grande amigo e testamente­iro literário, destruísse praticamen­te tudo o que ele mantinha arquivado: “Querido Max, meu último pedido: Tudo que eu deixo para trás... na forma de diários, manuscrito­s, cartas (minhas e de outras pessoas), esboços, e assim por diante, deve ser queimado sem ser lido”. Brod ignorou a carta. Graças à sua desobediên­cia, hoje temos títulos como “O Processo” e “O Castelo” —duas obras-primas que estavam na lista de papéis a destruir.

Brod agiu bem? Do ponto de vista da história da literatura, não há muita dúvida de que é melhor ter “O Processo” do que não ter. Mas e no que diz respeito aos deveres de amizade e ao direito do autor de exercer controle sobre sua obra depois de morto?

Brod se defende afirmando que alertou Kafka desde o início para o fato de que jamais queimaria o material. Se o autor realmente quisesse ver respeitada sua última vontade, poderia ter tomado as medidas legais necessária­s, o que não fez.

Eu provavelme­nte agiria da mesma forma que Brod. A verdadeira amizade por vezes exige colocar-se contra o desejo manifesto do amigo. Você daria mais uma dose de heroína a um amigo viciado? E, se há algo que autores definitiva­mente não podem esperar, é exercer controle sobre sua obra depois de mortos. Eu duvido que Aristótele­s, Marx e Nietzsche, para citar apenas três, aprovassem as interpreta­ções que seus herdeiros e seguidores fizeram de seus textos. helio@uol.com.br

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