Folha de S.Paulo

Para decifrar a conexão russa

- DEMÉTRIO MAGNOLI COLUNISTAS DA SEMANA segunda: Celso Rocha de Barros, terça: Mario Sergio Conti, quarta: Elio Gaspari, quinta: Janio de Freitas, sexta: Reinaldo Azevedo, sábado: Demétrio Magnoli, domingo: Elio Gaspari e Janio de Freitas

“BROMANCE”, ROMANCE de irmãos, diagnostic­ou Obama na campanha eleitoral, referindos­e ao intercâmbi­o de elogios entre Trump e Putin. De fato, o magnata americano admira (ou inveja?) o autoritari­smo do líder russo, que se libertou do escrutínio público atemorizan­do a imprensa e calando os críticos.

Nos seus ataques verbais ao “fracassado” “The New York Times”, na emissão de um decreto ilegal anti-imigração e na nomeação de um capataz para “supervisio­nar” as agências de inteligênc­ia distingue-se a utopia reacionári­a de fazer os EUA mimetizare­m a Rússia. Contudo, a crise da demissão do conselheir­o de Segurança Nacional, Michael Flynn, sugere que a conexão russa tem raízes mais fundas.

Previsivel­mente, diante de um fenômeno tão surpreende­nte, os analistas enveredam pelo caminho fácil das teorias conspirató­rias. Trump temeria a revelação de segredos pessoais ou financeiro­s descoberto­s pelas agências de inteligênc­ia russas —eis a explicação dominante. Uma charge publicada pelo “Washington Post” coloca Putin no armário do presidente americano, sobre uma pasta de arquivos intitulada “declaraçõe­s fiscais de Trump”.

Anne Applebaum, colunista do mesmo jornal, aponta as relações financeira­s, de amplitude desconheci­da, entre o império imobiliári­o de Trump e o dinheiro arisco de origem russa. Isso tudo faz parte do campo de possibilid­ades —mas não explica a extensão dos laços entre o novo governo americano e o Kremlin.

A conexão russa repousa sobre uma base menos misteriosa, porém mais sólida. Para decifrá-la, é preciso escapar dos atalhos sedutores oferecidos pelo universo da espionagem e encarar de frente o desvio histórico inaugurado com a eleição de Trump.

No Salão Oval da Casa Branca, senta-se uma figura que compartilh­a a visão de mundo da Rússia putinista. Trump e Putin são “antiglobal­istas”, isto é, adversário­s explícitos da ordem mundial aberta erguida pelos EUA no pósguerra e reforçada com a implosão do bloco soviético da Guerra Fria. O “bromance” pulsa no ritmo de uma velha canção nacionalis­ta que invoca a miragem do retorno a um glorioso passado ideal.

“America first”, o lema de Trump, é um plágio direto do estandarte do Comitê America First, a organizaçã­o isolacioni­sta criada em 1940 para evitar a entrada dos EUA na guerra mundial, que reuniu uma fauna de nacionalis­tas conservado­res, simpatizan­tes do fascismo, socialista­s e antissemit­as como Charles Lindbergh. O lema ressurgiu em 2000, empregado pelo candidato independen­te à presidênci­a Pat Buchanan, que classifico­u a campanha contra o Eixo como uma “guerra desnecessá­ria” e, como o Trump de hoje, atribuiu a “decadência americana” ao “vício” do livre comércio. (Ironicamen­te, à época, Trump definiu Buchanan como um “adorador de Hitler”).

No fim, por razões distintas, tanto Trump quanto Putin enxergam a atual ordem mundial como uma armadilha que prende suas nações aos interesses de uma maléfica “elite globalista”. Dessa convergênc­ia ideológica fundamenta­l, âncora da conexão russa, emerge um programa estratégic­o comum que vai muito além da retirada das sanções à Rússia ou de um acomodamen­to geopolític­o na guerra síria.

O Kremlin e a Casa Branca simpatizam com as correntes políticas ultranacio­nalistas que buscam destruir o edifício da União Europeia (UE). Nigel Farage, o líder do Ukip, que comandou a ala radical na campanha pela saída britânica da UE, é o ponto de referência de ambos no Reino Unido. Marine Le Pen, a candidata presidenci­al da Frente Nacional, ocupa o mesmo lugar na França.

“Só há um homem capaz de quebrar esse cadeado —e esse homem é Donald Trump”, proclamou Farage dias atrás. Ele se referia, literalmen­te, ao congelamen­to das relações entre a Europa e a Rússia. Mas, no fundo, o “cadeado” é sua metáfora para a ordem global aberta estabeleci­da pelas democracia­s ocidentais.

No Salão Oval da Casa Branca, senta-se uma figura que compartilh­a a visão de mundo da Rússia putinista

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil