Folha de S.Paulo

CRÍTICA Sem tentar esgotar tema, livro aborda o essencial do samba

Lira Neto desfaz mitos e polêmicas em 1º volume de sua história do gênero

- LUIZ FERNANDO VIANNA

FOLHA

Cearense radicado em São Paulo, Lira Neto escreveu o melhor livro já lançado sobre a formação do samba no Rio de Janeiro. Sua narrativa vai de 1892 a 1933 —com exceção do prólogo, situado em 1940.

“Uma História do Samba, Volume 1 – As Origens” (estão previstos outros dois) não pretende esgotar nenhum assunto, mas dá conta de tudo o que é importante em não mais do que 260 páginas.

As páginas restantes são ocupadas, na sua maior parte, por notas em que ele aponta de onde retirou informação por informação, desprezand­o as licenças poéticas que fazem a fama de alguns biógrafos.

A obra de Lira Neto não detalha a vida da população negra da cidade na virada do século 19 para o 20 como faz “Tia Ciata e a Pequena África do Rio de Janeiro”, de Roberto Moura.

Não tem a riqueza de relatos de “Samba de Sambar do Estácio”, de autoria de Humberto Franceschi.

Não esmiúça a vida de um personagem e de tudo que o cerca como acontece em “Noel Rosa – Uma Biografia”, de João Máximo e Carlos Didier.

E não aprofunda questões musicais da forma que consegue “Feitiço Decente”, de Carlos Sandroni.

No entanto, realiza uma súmula rigorosa dessas obras fundamenta­is e de mais 150 títulos que constam de sua bibliograf­ia.

Tudo com um texto envolvente, de força literária, jamais atravancad­o pelo pano de fundo socioeconô­mico. DOCUMENTOS Como excelente repórter e pesquisado­r que é (biógrafo de Getúlio Vargas, Padre Cícero, Maysa), Lira foi aos jornais e documentos da época.

Assim, foi capaz de trazer novidades à inesgotáve­l polêmica em torno de “Pelo Telefone”, primeira música registrada como samba a fazer sucesso, em 1917.

Levantou o revelador processo, iniciado em 1928, que custou a Ismael Silva uma de suas condenaçõe­s.

Traçou perfis minuciosos de Hilário Jovino Ferreira, Sinhô e Cartola, entre outros protagonis­tas, além de pincelar coadjuvant­es como Avelino de Alcântara e José Paula Pires, o Lord Diplomata.

Também reforçou o papel do pai de santo Zé Espinguela, que foi o organizado­r dos primeiros concursos de escolas de samba.

E tirou a limpo histórias como a do uso da palavra “samba” —ele a localizou num jornal de 1830, oito anos antes do que se pensava.

Ou sobre a invenção de instrument­os como o surdo e a cuíca, que não são fruto de uma ou outra mente inspirada —ao contrário do que todos repetimos há décadas—, mas resultado de um processo histórico.

Lira Neto não precisava ter trocado informação por opinião em alguns trechos, caso da sua defesa indignada dos Oito Batutas, o grupo de Pixinguinh­a que foi alvo do racismo da elite nacional no início da década de 1920.

Mas isso não mancha em uma vírgula seu trabalho de invejável fôlego.

Pode não ser um livro ideal para iniciantes, pois quem conhece um pouco dos fatos do samba aproveitar­á bem mais. Porém tampouco é para iniciados blasé.

“Uma História do Samba” desafia os lugares-comuns e sacode a poeira que por vezes reveste a criação mais importante da vida cultural brasileira. É uma obra que altera a nossa maneira de enxergar o passado e o futuro do samba. AUTOR Lira Neto EDITORA Companhia das Letras QUANTO R$ 64,90 (368 págs.) AVALIAÇÃO ótimo

 ?? Acervo Iconograph­ia/Divulgação ?? Festa da Penha, encontro de bambas, em 1915, imagem do primeiro volume de ‘Uma História do Samba’, de Lira Neto
Acervo Iconograph­ia/Divulgação Festa da Penha, encontro de bambas, em 1915, imagem do primeiro volume de ‘Uma História do Samba’, de Lira Neto
 ?? Arquivo pessoal ?? Os mestres e fundadores Fuleiro (à esq.) e Molequinho
Arquivo pessoal Os mestres e fundadores Fuleiro (à esq.) e Molequinho

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