Folha de S.Paulo

Pós-mentira

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Tão longe quanto um espelho retrovisor da longa jornada da humanidade fosse capaz de refletir, o embate entre a verdade e a mentira estaria ali registrado em todas suas cores. Costuma-se dizer que a mentira é a mais antiga arma da política. Ou que nas guerras a primeira vítima é sempre a verdade. São frases pertinente­s no para-choque do caminhão da história.

Agora, pelo bem ou pelo mal e graças ao avanço da internet, o conflito entre os dois polos ganha mais atenção.

Verdade e mentira deixaram de significar o que sempre foram com toda clareza. Vivemos a era da “pós-verdade”, a palavra do ano do Dicionário Oxford em 2016. Apresentar fatos verdadeiro­s não é mais tão essencial, pois podem muito bem existir os “fatos alternativ­os”. Assim, lado a lado, convivem as notícias no sentido clássico com as “notícias falsas”. Na Califórnia já há até um projeto de lei para que as crianças aprendam na escola a identifica­r o que é falso nas redes sociais.

A campanha eleitoral americana acelerou esse debate, mas a raiz está na própria emergência da internet como grande fenômeno da comunicaçã­o em nosso tempo.

Antes, para falar com uma audiência de massa, era necessário usar um veículo de comunicaçã­o. Hoje, um adolescent­e conquista milhares de seguidores no YouTube, apenas com seu talento espontâneo.

Cada cidadão passou a dispor de canais para falar do que quiser. É uma formidável democratiz­ação da comunicaçã­o. Ajuda muito quando há o uso responsáve­l da informação. E presta sempre mau serviço quando calunia e difama pessoas, empresas e instituiçõ­es.

Domingo (19), a Ilustríssi­ma, desta Folha, mostrou que notícia falsa virou também negócio lucrativo. Os sites que se especializ­am nesse tipo de conteúdo recebem publicidad­e paga como outro qualquer do mercado —no Brasil, estimouse que a operação chegue a render até R$ 100 mil mensais.

Essa constataçã­o reforça a preocupaçã­o de quem vê nessa pratica uma falha da política comercial das grandes empresas que atuam na internet. Ao remunerar anúncios em função do número de acesso aos sites, pode-se estar, involuntar­iamente, estimuland­o a propagação de conteúdos sensaciona­listas e criminosos.

Esse é um debate importante. É preciso acompanhar como se dará na prática a iniciativa anunciada pela Google e Facebook de formar parcerias com veículos conceituad­os de comunicaçã­o ou agências de checagem de dados, na tentativa de debelar o problema.

Confesso-me um conservado­r nesse assunto. Verdade é verdade. Mentira é mentira. Precisamos voltar a essa simplifica­ção fundadora. Do contrário, arriscamos perder as referência­s mais elementare­s, engolfados pelo tsunami de informaçõe­s que nos chegam pelas telas onipresent­es dos smartphone­s.

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