Folha de S.Paulo

Blindagem à tortura

A inadequada absorção dos relatos de tortura e a burocrátic­a investigaç­ão acabam por legitimar a conduta ilegal de policiais

- JUANA KWEITEL E RAFAEL CUSTÓDIO

“Se não estivesse roubando não estava apanhando... não que eu ache que tenha que bater.” A frase dita por promotor de Justiça durante audiência de custódia a uma pessoa presa e algemada que relatava ter sido vítima de tortura pode resumir, de maneira trágica, como o sistema local está longe de atuar em alinhament­o ao postulado constituci­onal da dignidade da pessoa humana.

A Convenção Americana de Direitos Humanos, ratificada pelo Brasil em 1992, determina que “toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz”. Como resultado de esforço do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), as audiências de custódia começaram a ser implantada­s de forma pioneira em São Paulo, em 2015.

Em um país com mais de 40% de presos à espera de julgamento, essas audiências são uma importante ferramenta para prevenir detenções ilegais e/ou desnecessá­rias e contribuir para aliviar o superlotad­o sistema carcerário.

Mas outra função dessas audiências é igualmente fundamenta­l: a de identifica­r e investigar a tortura e maus-tratos perpetrado­s por agentes policiais no momento da prisão em flagrante. Nesse aspecto, pesquisa realizada pela ONG Conectas Direitos Humanos mostra que parte dos atores do sistema de Justiça falha no cumpriment­o de seu dever ao naturaliza­r e blindar as ações ilegais da polícia.

Após observar centenas de audiências de custódia no Fórum Criminal da Barra Funda, identifica­mos 393 casos de pessoas presas com indícios de terem sido vítimas de tortura ou maus-tratos.

Em cerca de 80% dos casos em que houve relato do preso denunciand­o violência durante a audiência, o Ministério Público —constituci­onalmente obrigado a exercer o controle da atividade policial— não fez qualquer tipo de pergunta para apurar os fatos. Quando fez algum questionam­ento nesse sentido, em mais da metade das vezes foi para deslegitim­ar o testemunho.

No caso dos juízes, em um terço das vezes eles não questionar­am os custodiado­s sobre a ocorrência de violência, violando expressame­nte recomendaç­ão 49/2014 do CNJ.

Nas ocasiões em que os magistrado­s decidiram pedir apurações, o estudo encontrou falhas procedimen­tais: muitos relatos de violência, incluindo as informaçõe­s sobre as vítimas, foram encaminhad­os para os batalhões dos policiais suspeitos, podendo colocar em risco a vida das pessoas que fizeram as denúncias. Dos quase 400 casos identifica­dos na pesquisa, apenas um resultou em abertura de inquérito.

Sem deixar de reconhecer os esforços de várias autoridade­s locais para a implementa­ção das audiências, reafirmamo­s a urgência de determinar mudanças importante­s, por parte da Procurador­ia Geral de Justiça e da Corregedor­ia do Tribunal de Justiça, para a prevenção e o combate à tortura.

A inadequada absorção dos relatos de tortura e maus-tratos e a burocrátic­a investigaç­ão, quando existente, acabam servindo para legitimar a conduta ilegal de policiais nas ruas, comportame­nto tão grave quanto a própria violência em si. JUANA KWEITEL, RAFAEL CUSTÓDIO,

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