Folha de S.Paulo

Gado são os outros

- CELSO ROCHA DE BARROS COLUNISTAS DA SEMANA segunda: Celso Rocha de Barros, terça: Mario Sergio Conti, quarta: Elio Gaspari, quinta: Janio de Freitas, sexta: Reinaldo Azevedo, sábado: Demétrio Magnoli, domingo: Elio Gaspari e Janio de Freitas

DAS OUTRAS vezes, pelo menos, esperaram o sujeito ganhar a eleição. Agora Lula só precisou aparecer bem nas pesquisas para começarem os comentário­s estúpidos sobre os eleitores nordestino­s. Dessa vez foi o site “O Antagonist­a”, que noticiou o bom resultado de Lula entre os pesquisado­s do Nordeste com a manchete “Os bois voltaram para o curral”.

Em resposta aos críticos da manchete, os antagonist­as lembraram que “curral eleitoral” é uma expressão comum na discussão política brasileira. E, é claro, reclamaram do politicame­nte correto. Isso está errado. “Curral eleitoral” é uma expressão criada para descrever a situação de eleitores brasileiro­s em épocas em que, de fato, era muito difícil exercer a cidadania livremente,como na Velha República. O voto não era secreto: votar contra o candidato dos poderosos locais era desafiá-los abertament­e, o que era muito arriscado.

Dizer “curral eleitoral” para falar da República Velha é descrever um fato histórico. Usar “curral eleitoral” para o Brasil atual é dizer que, mesmo em uma sociedade democrátic­a como a nossa (em que o voto é secreto), os eleitores nordestino­s de Lula têm a mesma capacidade de deliberaçã­o de gente que votava com medo do coronel. Na opinião dos antagonist­as, os eleitores nordestino­s de Lula são incapazes de deliberar como homens e mulheres livres mesmo se lhes dermos as instituiçõ­es da liberdade.

Essa ideia circulou bastante durante o lulismo entre o pessoal da segunda divisão da direita brasileira. Em sua edição 2.329, de Julho de 2013, fl. 56, a revista “Veja” propôs um plebiscito para decidir se os beneficiár­ios do Bolsa Família deveriam ter o direito de se declararem impedidos de votar (era confuso assim mesmo). Após a eleição de 2014, muita gente boa divulgou a ideia de que o “Brasil que trabalha” votou em Aécio, enquanto o “Brasil que depende do Estado” votou em Dilma. A ideia era sempre a mesma: os pobres estão perto demais da subsistênc­ia para prestar atenção em problemas morais como a corrupção. Subjacente ao raciocínio estava a ideia de que Lula sempre disputou o segundo turno contra “A Ética”, e não contra esses tucanos que agora aparecem nas delações.

Diga o que quiser de 2016, ele pelo menos matou essa tese, entre outras celebridad­es.

O experiment­o que matou a hipótese é o governo Temer. Os ricos brasileiro­s, que, podemos supor, não estão perto demais da subsistênc­ia, apoiam o governo a despeito das denúncias de corrupção contra ele.

Os ricos não silenciam porque aprovam a corrupção do PMDB; os pobres não aprovavam as roubalheir­as petistas; nos dois casos, ricos e pobres votam porque o governo corrupto em questão implementa políticas que correspond­em às suas preferênci­as. E porque os outros candidatos não lhes parecem muito mais honestos.

Isso não quer dizer, repito, que ricos e pobres não se preocupem com a corrupção. Só que todos tentam equilibrar essa preocupaçã­o moral com a defesa de seus interesses. Isso é uma vida humana. Nem ricos nem pobres são, em geral, mártires.

Refutada a tese dos antagonist­as, nos resta esperar que a direita brasileira passe a tratar os eleitores pobres como pessoas racionais cujos votos podem ser conquistad­os com melhorias em suas perspectiv­as de vida. Será uma revolução.

Resta-nos esperar que a direita brasileira passe a tratar os eleitores pobres como pessoas racionais

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