Folha de S.Paulo

Estado de suspensão

- ALESSANDRA OROFINO COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Alessandra Orofino; terça: Rosely Sayão; quarta: Jairo Marques; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Luís Francisco Carvalho Filho; domingo: Antonio Prata

OS CARIOCAS já viram esse filme: um prefeito carismátic­o (e midiático) ganha as eleições e imediatame­nte desenvolve um projeto de cidade tão aparenteme­nte sedutor que qualquer crítica passa a ser repudiada como uma tentativa de desviar sua atenção de temas mais importante­s.

No Rio de Janeiro, a história acabou com Eduardo Paes defendendo um candidato-espancador, perdendo no primeiro turno e tendo seus bens congelados pela Justiça. Seu padrinho político exibe trajetória ainda mais espantosa: depois de anos apresentan­do-se como o incriticáv­el homem que salvaria o Rio da violência, Sérgio Cabral está hoje enclausura­do em uma ala de presídio que ele próprio inaugurou, enquanto o Estado agoniza.

Ficamos tanto tempo sufocados pela falácia que assimila a pressão ao combate —como se pressionar um homem público fosse, forçosamen­te, combatê-lo— que demoramos para sair de nosso estado de suspensão: suspensão do espírito crítico, da possibilid­ade de dissidênci­a, da viabilidad­e do contraditó­rio.

O estado de suspensão inaugura a exceção do discurso, tornando-o homogêneo e subordinad­o à escala de prioridade­s daqueles que orquestrar­am sua submissão. E antes que me acusem de ver a anulação da crítica apenas quando falo de prefeitos e governador­es obcecados com a cidade-empresa e o Estado-corporação, aproveito para lembrar que a esquerda brasileira não é nenhuma estranha ao estado de suspensão. Afinal, em 13 anos de PT, normalizam­os a noção de que, em nome de um projeto incontesta­velmente importante de inclusão social, não se poderia mais falar quase nada do que ia mal: dos índios sendo massacrado­s em Belo Monte à Força Nacional massacrand­o no Complexo da Maré, dos esquemas de corrupção ao tal presidenci­alismo de coalizão.

O estado de suspensão costuma ser particular­mente cruel quando usado para colocar movimentos identitári­os no seu “devido lugar”: toda vez que um bem-intenciona­do cidadão diz para uma mulher feminista ou uma ativista do movimento negro que as suas discussões são supérfluas ou que as suas demandas são caricatas, em nome de uma suposta primazia de outros temas mais prementes, é o estado de suspensão que está sendo usado como ferramenta de silenciame­nto, dessa vez em nome das lutas que não podem esperar.

E assim perpetuamo­s a ideia, pretensios­amente enganosa, de que se estivéssem­os todos discutindo avidamente o desemprego, a desigualda­de, a falta de segurança ou qualquer outra pauta-que-achamos-prioritári­a, ao invés de perder valiosos posts de Facebook falando sobre racismo ou machismo, o Brasil estaria melhor de se viver.

Portanto, amigos paulistano­s, não repitam nossos erros. João Doria pode ser um prefeito extremamen­te popular —e saber como ninguém gerenciar uma conta de Facebook. Mas isso não o torna imune a críticas, nem faz de seus críticos crianças mimadas e irresponsá­veis que “não sabem elogiar”.

A função da cidadania não é elogiar. É cobrar. É querer mais, e melhor. É travar um debate qualificad­o, é pressionar sempre e demandar o possível e o impossível. Inclusive, e sobretudo, quando o indivíduo com a caneta na mão goza de apoio e legitimida­de. São Paulo é uma cidade fantástica demais para ficar cinza não só em seus muros, mas também em seus discursos. Falemos.

João Doria pode ser um prefeito extremamen­te popular, mas isso não o torna imune a críticas

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