Folha de S.Paulo

‘O Açougueiro’ divisa homem e animal no real maravilhos­o

- VALMIR SANTOS

apresentaç­ão que pretende assistir, porque ele é muitas vezes substituíd­o.)

A encenação de Ulysses Cruz, tão voltada ao detalhe de cada novo “universo”, não parece atentar para o dinamismo que a trama como um todo requer —afinal, é uma história de amor, com começo, meio e fim, de estrutura bastante tradiciona­l.

É como se a peça se erguesse e caísse, seguidamen­te, ao longo de mais de uma hora. Não tem uma condução firme, um norte claro, resultando por vezes tediosa.

FOLHA

Um dos precursore­s do real maravilhos­o na literatura latino-americana, o cubano Alejo Carpentier (1904-1980) alinha essa ascendênci­a formal e temática ao estado bruto de nossa formação: “Aqui o insólito é cotidiano”.

Os criadores do solo “O Açougueiro” ecoam a latência cultural do continente ao circunscre­ver o sertão mítico a partir da vida social. O homem é a medida da voragem animal nesse drama.

Instinto e destino interpenet­ram-se na história do sujeito desvalido da zona rural de Pernambuco.

Em criança, Antônio (Alexandre Guimarães) sonha com a carne que não vê carne no prato. Adolescent­e, vai “para a cidade” trabalhar num açougue e logo vira dono do seu. Introverti­do, fia-se no corte rente e firme e cai no gosto da clientela.

Isso até o namoro e casamento com Nicinha, uma prostituta. Os moradores passam a destilar crueldade e preconceit­o. Todos a escorraçam. A partir daí a narrativa galga o irracional­ismo trági- co sob coerência estilístic­a bem urdida pela dramaturgi­a e direção de Samuel Santos.

Tomando por embrião um dos contos de sua lavra na série “Desatinos” e a pesquisa de viés antropológ­ico no grupo recifense O Poste Soluções Luminosas, Santos também cria a luz da encenação rica em imagens e sonoridade­s.

O ator se apropria da figura humanizada do boi e, por outro lado, da ruminação do personagem animalizad­o.

É capaz de instantes lapidares ou de seu contrário, transparec­endo a ansiedade do artista-narrador. Ele afrouxa a precisão do gesto, por exemplo, nos atos imaginário­s de cortar a carne dependurad­a (não se vê a “arte” do açougueiro ali) ou de retirar um caixão do lombo do animal (quase cai). Detalhes que pedem modulações no mesmo quilate das vozes que enuncia, como esta, inclemente: “O veneno da carne é a inveja”. QUANDO sex. e sáb., às 21h; dom., às 19h; até 5/3 ONDE Sesc Pompeia (r. Clélia, 93, Água Branca, tel. 3871-7700) QUANTO R$ 7,50 a R$ 25; 16 anos AVALIAÇÃO bom

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Marília Gabriela como a física quântica Marianne em ‘Constelaçõ­es’
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Lenise Pinheiro/Folhapress Alexandre Guimarães é Antônio na peça ‘O Açougueiro’

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