Folha de S.Paulo

Culpa de ser branca

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RIO DE JANEIRO – Mais um centenário musical provoca confusão: o do jazz. Tudo porque a gravação celebrada como a primeira do gênero – a de “Livery Stable Blues”, pela Original Dixieland Jass Band, no estúdio da Victor, em Nova York, a 26 de fevereiro de 1917 – não foi bem a primeira. Semanas antes, a 30 de janeiro, a mesma ODJB, como era chamada, já gravara esse título para a Columbia – que, assustada com o resultado, engavetou o disco e dispensou o grupo. Pois a Victor acolheu a ODJB, gravou-a, lançou logo o disco e, para todos os efeitos, este ficou sendo o primeiro do jazz.

Mas nada disso é novidade. O problema é o fato de a ODJB, um quinteto de cornet (irmão mais velho e delicado do trompete), trombone, clarineta, piano e bateria, ser composto de músicos brancos. Até 1930, isso não incomodava ninguém. Mas, então, um crítico francês, Hugues Panassié, começou a pregar que o “verdadeiro” jazz era o negro, e que os brancos eram seus usurpadore­s. Fãs brancos do jazz, desinforma­dos e acometidos de “mauvaise conscience”, adotaram essa ideia – que, contrarian­do todas as provas, tem adeptos até hoje.

A ODJB só foi a primeira a gravar “jass” porque, antes, um negro de New Orleans, o trompetist­a Freddie Keppard, recusou o convite da Columbia. Temia que, se sua música fosse ouvida em discos, seria copiada – o que ela foi do mesmo jeito, porque ele a tocava nos cabarés. E como os puristas explicam que um sucesso de Keppard fosse uma ária de “Pagliacci”, a ópera de Leoncavall­o, transposta para seu estilo?

Na New Orleans de 1917, negros e brancos tocavam a mesma música, feita de ritmos africanos e harmonias europeias. Dela resultaram, quase ao mesmo tempo, o negro Louis Armstrong e o branco Bix Beiderbeck­e, igualmente gênios.

A ODJB, coitada, não tinha culpa de ser branca. GUSTAVO PATU

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