Folha de S.Paulo

Contos de canadense revelam mulheres de força incomum

- MARCELINO FREIRE

FOLHA

Pegue um cisto ovariano, um tumor do tamanho de um coco, parecido a uma “massa gosmenta que se tira de um encanament­o de uma pia”, e coloque-o dentro de um frasco de vidro com formol.

Depois, deixe-o à mostra, feito um troféu extravagan­te, em cima de uma lareira. Uma boa maneira de explicar, às visitas, a sua vitória.

Sim, não deixa de ser uma criança, “carne da sua carne”, que foi, tão somente, impedida de crescer.

Essa imagem, a do “bebê” no frasco, está em um dos contos de “Dicas da Imensidão”, de Margaret Atwood.

Aliás, fica a dica para uma próxima edição da obra, pela editora Rocco. Em vez da capa cafona, em verniz brilhoso, com a imagem de uma mulher emergindo de um mar azul, que tal a secura fosca de um feto em um pote? Pode ser até um recipiente desses que reaproveit­amos quando jogamos fora a azeitona, o requeijão, a maionese.

Batata! A prosa da escritora canadense é de um vexame sem igual, de uma dor encalacrad­a, das raízes-cicatrizes do mal. Do jeitinho que eu gosto e devoro. Uma literatura cheia de embriões indigestos que carregamos do passado e que acabam moldando o nosso futuro.

Essa reunião de contos é uma verdadeira aula de “anatomia” de como “inscrever” uma história.

Lançado em 1991, só agora chega ao Brasil em precisa e raivosa tradução de Ana Deiró. Se, de cara, o título não me atraiu —só depois descobri tratar-se de uma referência a um livro que, outrora, ensinava a fazer coisas úteis, como apanhar animais em armadilhas—, fui logo fisgado pela história que abre o volume e segue a rotina de um grupo de garçonetes, e de buliçosos adolescent­es, em uma mesma colônia infernal de férias.

Acampament­o que é a geografia de um segundo conto, em que a protagonis­ta, viúva, se muda para um apartament­o capaz de acomodar seus quadros, repletos de lagos com margens ensolarada­s, sem a presença de nenhuma figura humana.

Até sabermos que, entre as folhagens das pinturas, vive uma amiga que desaparece­u, da mesma colônia (de cupins) em que estavam, e nunca mais foi encontrada.

A capa da Rocco parece ter sido a tentativa de reproduzir este “elo” perdido. Tentativa frustrada. E nada, nesta “Imensidão”, é frustração. Margaret Atwood sabe perfeitame­nte em que lugar reside a força de suas mulheres. CÚMPLICES É assombrosa a capacidade parasitári­a com que ela vai ao inferno. A forma como cola no corpo de suas criaturas e pastagens. E volta, doida e doída, para nos contar tudo.

Encontra, pelas bandas de cá, cúmplices como Lygia Fagundes Telles, Cíntia Moscovich e a recém-lançada Nathalie Lourenço. Autoras que soltam o verbo.

Cada vida, nas narrativas de Margaret, vem munida dessa vingança contra homens predadores e antigos (dois dos contos, por sinal, falam de “machistas” carcaças troglodita­s).

Longe de serem heroínas frustradas, essas mulheres têm é uma força incomum que, mesmo tendo demorado a nascer, desperta do vulcão, de coração e pedra na mão. De repente, à nossa frente, o monstro ressuscita. Pulando do vidro para o teu colo. Segura. É também tua esta cria. MARCELINO FREIRE,

 ?? Alexandre Meneghini/Reuters ?? A canadense Margaret Atwood, autora do livro de contos ‘Dicas da Imensidão’, fotografad­a em Havana no mês passado
Alexandre Meneghini/Reuters A canadense Margaret Atwood, autora do livro de contos ‘Dicas da Imensidão’, fotografad­a em Havana no mês passado

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil