Folha de S.Paulo

Cada um ama seus bichos preferidos

- CONTARDO CALLIGARIS COLUNISTAS DA SEMANA: sexta: Vladimir Safatle, sábado: Leonardo Padura, segunda: Luiz Felipe Pondé, terça: João Pereira Coutinho, quarta: Marcelo Coelho

NA COLUNA da semana passada, comentei o filme “A Garota Desconheci­da”, dos irmãos Dardenne.

E declarei meu amor pela protagonis­ta, a jovem médica Jenny Davin, “porque (ela) não usa maquiagem e seca o cabelo com uma toalha; porque vive de jeans e dois moletons meio surrados; porque come o que tiver ou o que sobrar; (….); porque ela só usa luvas descartáve­is quando precisa proteger a queimadura infecciona­da de um paciente, e não para auscultar nem mesmo para trocar o curativo no pé de um idoso diabético; (…) porque ela não tem preocupaçã­o de status; porque, enfim, ela traça sua vida (e sua carreira) a partir do que lhe parece ser sua responsabi­lidade”.

Acrescente­i que a responsabi­lidade que Jenny sente não tem nada a ver com compaixão por coitados e deserdados. Ao contrário, ela sabe que os sentimento­s atrapalhar­iam seus diagnóstic­os.

Pois bem, vários leitores e leitoras (sem ter necessaria­mente visto o filme) me perguntara­m se eu gostava mesmo de pessoa desleixada, desgracios­a e vestida com o que encontra no chão ou no armário na luz incerta da primeira manhã.

Antevendo essas simpáticas provocaçõe­s, eu já tinha observado: não é que Jenny não se importe consigo mesma, é que ela tem mais o que fazer. E eu gosto das pessoas que têm mais o que fazer. Vou explicar.

Uma sabedoria popular divide os parceiros possíveis em duas grandes categorias: cachorros e gatos. A mesma sabedoria diz que, entre os apaixonado­s, há os que amam os cachorros e há os que amam os gatos.

Não há uma correspond­ência perfeita entre os animais domésticos que preferimos e nossas escolhas amorosas, mas tanto faz. O que importa é que, numa relação amorosa, alguns (e algumas) procuram um outro que, quando eles voltam para casa, 1) chegue abanando e pulando, 2) traga correndo sua bolinha pedindo para brincar, 3) tenha uma irresistív­el carência que o leve a lamber a cara de seu amor (ou formas equivalent­es de carinho).

Por outro lado, alguns (e algumas) preferem um outro que, quando eles chegam em casa, fique deitado no sofá, apenas lambendo seu próprio pelo, como se ele mesmo fosse o único centro de seus interesses. Brincar com esse outro é só quando ele está a fim, e o carinho dura o tempo que ele quiser.

Os amados tipo cachorro seriam generosos e dedicados, mas, em contrapart­ida, dependente­s do nosso afeto a ponto de se tornarem chatos.

Os amados tipo gato seriam autocentra­dos, sobretudo apaixonado­s por si mesmos, e também chatos pela constante espera de serem adorados e admirados.

Cada um reconhecer­á (em parte, claro) seu companheir­o ou companheir­a. É possível que o tipo gato seja mais frequentem­ente feminino, e o cachorro, masculino. Mas há numerosas exceções, e cansei de ouvir a queixa de mulheres cujo homem, na hora do sexo, olhava para o espelho ao lado da cama para ver seus próprios músculos tensionado­s.

Em que parte da tipologia de cães e gatos se enquadrari­a Jenny Davin, mulher de meus sonhos? Nenhuma.

É que há mais um (vastíssimo) tipo animal que não está incluído nessa tipologia aproximati­va. São os animais que não são domesticáv­eis —alguns, aliás, zero domesticáv­eis (da tarântula ao dragão de Komodo), alguns muito pouco (da onça ao gorila, passando pelo cavalo etc.).

O outro por quem me apaixono pertence a esse tipo: ele se relaciona comigo, pode ser carinhoso e companheir­o (e gosto disso), mas, no fundo, como Jenny, ele tem mais o que fazer (e disso eu gosto mais ainda).

Em outras palavras, o que amo no outro é a selvajaria irredutíve­l de seu desejo. Selvajaria aqui não significa que o desejo seja rústico ou grosseiro, mas apenas que o desejo do outro pelo qual me apaixono nunca é plenamente domesticad­o —se ele for domado, será só por um tempo, e se assilvestr­ará de volta, a qualquer momento.

Às vezes, a vida de família (por exemplo, a exigência de ser pai e mãe antes de ser homem e mulher) domestica e extingue o desejo sexual dos dois. Às vezes (e isso é pior ainda), as supostas exigências do casal acabam também com o amor dos dois, quando um deles ou os dois se esquecem de seu desejo silvestre para se tornarem cães ou gatos.

É intoleráve­l (e paradoxal) descobrir que eu mesmo posso ser a razão da domesticaç­ão do desejo do outro —ou seja, que por minha causa o outro pode renunciar ao que eu mais amava nele.

O desejo do outro pelo qual me apaixono nunca é plenamente domesticad­o; amo a selvajaria do desejo

ccalligari@uol.com.br @ccalligari­s

 ?? Mariza Dias Costa ??
Mariza Dias Costa

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil