Folha de S.Paulo

CRÍTICA Em filme sobre silêncio da fé, questão linguístic­a se esvai

Diretor peca ao preterir choque cultural de jesuítas portuguese­s no Japão

- INÁCIO ARAUJO

FOLHA

Até a metade do filme, todo mundo pode se perguntar por que diabos Martin Scorsese resolveu fazer este ‘Silêncio”. Que atualidade ou interesse tão grande pode ter a história de jesuítas que, no século 17, tentam introduzir o cristianis­mo no Japão?

Afinal, se é para falar de intolerânc­ia, convém lembrar que, naquele mesmo momento, a Inquisição corria solta na Europa. E não se tratava de introduzir um elemento estranho à cultura local.

Se é para falar de intolerânc­ia, por que não remeter aos judeus, perseguido­s por séculos a fio pelos cristãos, em especial os católicos?

Aos poucos, no entanto, descobrimo­s que, apesar dos impropério­s lançados pelos padres (ou ex-padres) contra o Japão, eles não espelham o pensamento do filme. Martin Scorsese pode ser católico, mas não se chama Mel Gibson.

Lá estão dois jovens jesuítas, dispostos a enfrentar todos os perigos de uma repressão feroz para resgatar do Japão o seu mentor, há anos desapareci­do.

O “Silêncio” a que o filme se refere é, infere-se a partir de certo momento, o de Deus. Lá estão, nas profundeza­s do Japão —às voltas com uma cultura que não os compreende, assim como eles não a compreende­m—, seus mais fiéis seguidores, aqueles que saíram pelo mundo dispostos a propagar a “fé verdadeira”.

No entanto Deus não os escuta. Suas preces são como que jogadas no vazio. Já havíamos visto esse tipo de dor em “A Última Tentação de Cristo”. Aquela vez era o próprio Cristo, o filho de Deus, que precisava escutar sua voz. O silêncio de Deus doía infinitame­nte mais do que a cruz ou os espinhos da coroa.

Então, sim, nos damos conta de que “Silêncio” é um filme da crise da fé. Ou, se se prefere, que nos remete mais à fé trágica dos jansenista­s do que aos jesuítas.

Sem discutir a questão que está por trás disso, o ponto de vista é bem interessan­te, e já alimentou, por sinal, grandes cineastas. IDIOMA A questão que emperra “Silêncio” é de outra natureza. É mais uma questão de Scorsese não conseguir se desfazer de seu hollywoodi­anismo quando isso se impõe.

Filmar jesuítas portuguese­s no Japão, que chegam ao país sem falar japonês, propõe ao filme uma questão linguístic­a interessan­te, que logo se desfaz porque todo mundo se entende na língua dos padres muito bem. O português, em princípio. O inglês no filme.

O cinema pode tomar certas liberdades nessa questão. Mas, quando a questão central é de natureza linguístic­a, convém ir com cuidado.

Depois de um início em que insinua se aprofundar nas dificuldad­es do contato, Scorsese acaba entregando a questão a Deus.

E Deus, como o filme bem constata, mantém-se em silêncio, o bastante para, no fim das contas, o espectador se lembrar de outro filme do mesmo diretor que nos fazia pensar tão intensamen­te no que o havia levado a fazê-lo: o esquecível “Kundun” (1997). (SILENCE) DIREÇÃO Martin Scorsese ELENCO Andrew Garfield, Adam Driver, Liam Neeson PRODUÇÃO EUA, 2016, 14 anos QUANDO estreia nesta quinta (9) AVALIAÇÃO regular The New York Times - O sr. conhecia os inquisidor­es antes do filme?

Issey Ogata - Eu conhecia apenas uma parte da história, bem superficia­lmente, que se passa cerca de cem anos antes da história de “Silêncio” —a visita de Francisco Xavier para divulgar o cristianis­mo no Japão. E sabia que anos mais tarde um dos xoguns decidiu proibir a religião cristã. Andrew Garfield disse que se sentiu um completo novato ao atuar ao lado do sr. e dos outros atores japoneses, profundame­nte preparados. A sensação dele era a de que seu trabalho era quase superficia­l.

Oh, isso é ridículo. [Risos.] Eu admiro muito o trabalho de Andrew, a incrível jornada de seu personagem, e a maneira pela qual a interpreto­u é muito comovente.

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