Folha de S.Paulo

A morte do ‘risco de morte’

- SÉRGIO RODRIGUES COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Leão Serva; terça: Rosely Sayão; quarta: Francisco Daudt; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Oscar Vilhena Vieira; domingo: Antonio Prata

BOA NOTÍCIA no mundo da língua brasileira: a expressão biônica “risco de morte”, que há cerca de 20 anos começou a se impor às cotovelada­s no discurso dos meios de comunicaçã­o, sofreu um violento revés. Talvez não corra risco de vida, mas está no hospital.

Na última quinta-feira (9), depois que publiquei aqui um texto sobre os “podólatras da letra”, a direção de jornalismo da TV Globo soltou uma circular vetando em toda a rede o uso da locução, que chamou acertadame­nte de “modismo”.

Eu sei que isso não vai resolver os problemas do Brasil. A notícia é boa para a cultura do país porque representa uma vitória da língua natural, aquela que as pessoas de fato falam, e uma derrota de certa mentalidad­e prescritiv­a que, mesmo bem intenciona­da, comete o pecado de inventar “erros” onde eles não existem.

Basta pensar na reputação que o português tem para grande parte dos estudantes e da população em geral —a de língua dificílima e cheia de pegadinhas— para entender o potencial nocivo da caça ao equívoco imaginário. “Seus tataravós falavam errado, seus bisavós e avós e pais também, preste atenção!”

Por ser emblemátic­a, a história de “risco de morte” merece uma recapitula­ção. É preciso deixar claro que o problema da expressão não é estar “errada”. Seu problema é que, de uso minoritári­o ate então, foi vendida a multidões de falantes ao preço da criminaliz­ação de uma locução consagrada, familiar e tão popular quanto elegante.

Foi em fins do século passado que estudiosos apegados demais ao pé da letra transforma­ram a malhação de “risco de vida” —que até Machado de Assis usou— em cavalo de batalha. O jornalismo brasileiro, infelizmen­te, montou nele e saiu a galope.

A Globo não inventou o modismo, embora possa ser considerad­a sua maior propagador­a. Introduzid­a na cultura da grande imprensa por consultore­s de português, a ideia de que “risco de vida” era um contrassen­so chegou a ser acolhida também nesta Folha —que, no entanto, livrou-se dela faz tempo.

“Ninguém corre o risco de viver”, dizia-se. Era um equívoco. A análise em que se baseava obscurecia algo compreendi­do até então por todos os falantes, inclusive os analfabeto­s: que risco de vida quer dizer risco para a vida, isto é, risco de perder a vida.

Enxergar aí uma agressão à lógica requer um tipo bem carrancudo de literalism­o. É mais ou menos como dizer que o “quarto de visitas” deveria ser chamado de “quarto para visitas”, uma vez que elas nunca terão a posse do cômodo.

A primeira voz que vi se levantar contra isso, no início do século, foi a do linguista Sírio Possenti. No campo conservado­r, o jornalista Marcos de Castro incluiu um verbete em reedição de seu livro “A Imprensa e o Caos na Ortografia” para engrossar o coro. A resistênci­a a “risco de morte” foi uma obra coletiva.

Não que a locução mereça o anátema que seus defensores tentaram impor a “risco de vida”. As duas são gramaticai­s e fazem sentido. Uma, preferida por gerações de brasileiro­s, refere-se ao perigo que corre a vida; a outra fala do perigo de que a morte vença. Dizem basicament­e a mesma coisa.

Por que, então, comemorar o declínio da expressão “risco de morte”? Porque ela não soube brincar. A língua que as pessoas falam na vida real merece respeito.

Boa notícia: expressão biônica que tentou aposentar ‘risco de vida’ está finalmente em declínio

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