Folha de S.Paulo

O falso equívoco

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RIO DE JANEIRO - Num dia de fevereiro de 1967, Nelson Rodrigues saltou do táxi na avenida Rio Branco e escutou um camelô gritar: “A nova Prostituiç­ão do Brasil! A nova Prostituiç­ão do Brasil!”. Ficou intrigado. Pela primeira vez, via uma prostituiç­ão sendo promovida como sabonete, Coca-Cola, Grapette. Olhou em volta. O camelô, que só faltava virar cambalhota­s de euforia, vibrava um folheto apregoando a “nova Prostituiç­ão do Brasil”.

O que espantou Nelson é que ninguém parecesse se espantar. Atravessou a avenida com aquele som nos ouvidos e se sentindo parte de um mundo irreal, em que era natural alguém anunciar, aos berros, “A nova Prostituiç­ão do Brasil! A nova Prostituiç­ão do Brasil!”. Atravessou de volta e só então se deu conta do equívoco auditivo: o camelô —que, de repente, não era mais um eufórico exuberante, mas um pobre diabo, triste e desdentado, dizia apenas: “A nova Constituiç­ão do Brasil! A nova Constituiç­ão do Brasil!”.

Era a Constituiç­ão de 1967, imposta pelos militares para substituir a de 1946, a mais liberal da nossa história. Seu texto, que não fora fruto de uma Constituin­te, incorporav­a os atos do regime militar de 1964, asfixiava o Legislativ­o e o Judiciário e permitia ao Estado suspender garantias e direitos individuai­s. Foi aprovada por um Congresso mutilado e oprimido.

Um dos autores dessa Constituiç­ão era o ministro da Justiça Carlos Medeiros Silva, que, pouco antes, em 1966, proibira o romance de Nelson, “O Casamento”, recém-lançado. Não era legal ainda a proibição de livros no Brasil. Nelson lutou e, a custo, conseguiu que seu grande livro fosse liberado.

Mas não deixou passar a oportunida­de de comparar aquela Constituiç­ão —cuja entrada em vigor fez 50 anos outro dia —àquilo que, para todos, ela era exatamente: uma nova prostituiç­ão do Brasil. avsinger@usp.br

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