Obra vigorosa se perde por vezes na busca pelo relato objetivo
universidades. Seu pensamento é o de um oficial da KGB: qualquer pessoa ou grupo realmente independente é, por definição, uma ameaça. É um raciocínio soviético. O presidente dos EUA, Donald Trump, manifestou diversas vezes sua admiração por Putin. Quais poderiam ser as consequências geopolíticas de uma aliança entre eles?
Uma aliança assim poderia ter consequências trágicas. Poderia representar, por exemplo, o fim da Otan (aliança militar ocidental) e, portanto, o fim da democracia na Europa Central. Pode representar ainda a disseminação da corrupção de estilo russo e o fim das instituições multilaterais que facilitaram o comércio e tornaram o continente rico. Há muita coisa em jogo.
Anne Applebaum começa e acaba seu colosso acerca da ocupação soviética da Europa Oriental contando a história da Liga das Mulheres Polonesas, na cidade de Lodz.
Instituição de caridade, em 1945 a liga oferecia ajuda aos deslocados da Segunda Guerra Mundial. Em cinco anos, virou pedaço orgânico do Partido Comunista local durante a transformação da Polônia em um Estado-satélite da União Soviética.
Em 1990, após o descerramento da Cortina de Ferro que dá título à obra da jornalista, havia voltado à origem.
A descrição do processo de absorção de estruturas da sociedade pelos planejadores soviéticos, focalizando o período de auge do stalinismo, entre 1944 e 1956, é a força motriz do livro e, ao mesmo tempo, sua fraqueza.
Impressiona o grau de detalhamento da ação de transformação social nos países em que o Exército Vermelho se viu estacionado após derrotar os nazistas em 1945. Oficiais treinados para doutrinação e gestão nas áreas ocupadas estavam prontos para agir, à semelhança dos esquadrões de extermínio das SS que acompanhavam tropas regulares alemãs no leste.
Applebaum tem lado. É casada com um ex-chanceler polonês e já havia escrutinado tema correlato em um livro sobre os campos de degredo político soviéticos.
Mas isso não a impede de buscar compreender por que os cidadãos afetados, com as exceções conhecidas, majoritariamente adaptaram-se à nova realidade na esperança de alguma normalidade após os horrores da guerra.
Depoimentos pontuados por referências culturais de proa, como o escritor húngaro Sándor Márai ou seu colega polonês Czeslaw Milosz, iluminam o quadro sem, contudo, deixá-lo colorido. É um livro pesado, monocórdico várias vezes, o que não facilita o transcurso de suas 595 páginas —notas e índices vão até a página 710.
Há também um paradoxo narrativo. A busca pelo relato objetivo acaba expondo certa falta de visão analítica.
Ao discutir os interesses soviéticos, Applebaum se limita a descartar a tese revisionista segundo a qual Stálin apenas reagia a ameaças americanas quando desceu sobre a Europa a famosa cortina —expressão de brilhante sacada retórica do líder britânico Winston Churchill.
É verdade, mas perde-se o contexto geopolítico. Basta um mapa para entender a razão inicial, ainda que não única, dos soviéticos. Eles repetiam o que os Románov haviam feito ao montar seu império e o que Putin busca na Ucrânia, Geórgia e afins: estabelecer áreas que dessem profundidade estratégica entre seu território e o Ocidente hostil.
Há também um problema de foco. A autora escolhe a “sua” Polônia, a Hungria e a Alemanha Oriental para a dissecção. À parte as diferenças entre esses países, não é possível contar uma história que se queira abrangente da região sem analisar regimes que tomaram caminhos díspares, como o da Iugoslávia.
Tudo isso não tira o valor do trabalho empreendido, vigoroso, mas o torna algo monolítico como o seu objeto.