Folha de S.Paulo

Uma filha da corrupção

- JANIO DE FREITAS COLUNISTAS DA SEMANA segunda: Celso Rocha de Barros, terça: Mario Sergio Conti, quarta: Elio Gaspari, quinta: Janio de Freitas, sexta: Reinaldo Azevedo, sábado: Demétrio Magnoli, domingo: Elio Gaspari e Janio de Freitas

CURTO E fino, na duração de meia hora e na franca serenidade do depoente, um dos mais aguardados depoimento­s à Lava Jato foi mais sutil e menos explorável do que o sensaciona­lismo jornalísti­co esperava. Ao falar do concubinat­o dos políticosc­omasemprei­teiras,EmílioOdeb­recht, decano dos acusados, qualificou-o como “o modelo reinante” no Brasil, de origem já perdida no tempo. Quase uma sugestão de lembranças remotas, que teriam ajudado a compreende­r melhor a Lava Jato e a poupá-la do dirigismo que lhe deixou desgastes inapagávei­s, tanto éticos como judiciais.

Na longa precedênci­a de tudo o que a Lava Jato atribuiu à criativida­de petista, encontro motivo até para uma revelação pessoal: reconheço um mérito histórico na corrupção. Como pessoa e como cidadão, não tenho escrúpulo em dizer que sou agradecido à inescrupul­osa transa entre poder público e empreiteir­as. E creio mesmo que todo brasileiro adepto da democracia deveria ter igual gratidão, ainda que a gratidão seja pouco encontráve­l por aqui.

Pois é, a democracia. Figueiredo, temperamen­tal, não sabia se desejava ir-se ou não. Seu círculo, sim, não tinha dúvida. A procura de meios para permanecer irradiava-se do ministro do Exército, Walter Pires, e seu grupo. Não havia unanimidad­e, com uns poucos preferindo a retirada e o alto do muro povoando-se cada vez mais. Aí estava o ministro da Aeronáutic­a, Délio Jardim de Mattos, que distribuía disposiçõe­s simpáticas para todos os quadrantes. Até que levou umas chamadas, sendo talvez mais agressiva a de Walter Pires.

Délio Jardim de Mattos era um dos menos presunçoso­s na gorilândia. Resolveu dar uma demonstraç­ão de firmeza. Soltou uma fala duríssima, ameaçadora aos políticos que abandonava­m o time do governo e aos oposicioni­stas, sem deixar dúvida quanto à disposição do núcleo do regime de manter-se no poder, a despeito do propósito contrário que se generaliza­ra no país. Inesperada, no primeiro momento a fala ameaçadora só teve como resposta as perplexida­des e os temores. Então Antonio Carlos Magalhães encerrou o silêncio.

Antonio Carlos e Délio eram tidos como amigos. Antonio Carlos visto como amigo só podia ser força de expressão. Se não era, a amizade não sobreviveu nem como hipótese. Para os ouvidos em geral, a fala de ACM foi ríspida e exaltada defesa da “abertura”, mais valiosa só por partir de quem era uma das eminências do regime. A fala tinha caroço, porém. Venenoso.

A Aeronáutic­a estava contratand­o as reformas de aeroportos, àquela altura os de Salvador e Recife. Como se fosse apenas mais um dos pontos em sua resposta ao ministro, ACM enfatizou a necessidad­e de licitações limpas. A OAS, empreiteir­a quase desconheci­da, faria parte das reformas. Baiana, tinha como um dos donos César Matta Pires. Genro de ACM, que sabia do que falava na referência às licitações.

O brigadeiro Délio não respondeu. Ninguém no governo respondeu. Uma atitude sem precedente. O continuism­o começou a murchar e não se recompôs mais. Só foi brigar na eleição indireta, com Paulo Maluf como seu representa­nte.

São insondávei­s os desdobrame­ntos possíveis, sem o episódio Délio/ ACM, da contradiçã­o entre o esgotament­o do regime —já perdidos os seus sócios civis— e a pretensão militarder­eteropoder.Masécertoq­ue, sem a fala de ACM, a resistênci­a militar não murcharia como murchou. E sem as denunciáve­is condições de contrataçã­o da empreiteir­a OAS pela Aeronáuiti­ca, ACM não responderi­a a ameaças com ameaça.

No Brasil, a democracia e seus adeptos têm dívida impagável com a corrupção.

Não tenho escrúpulo em dizer que sou agradecido à inescrupul­osa transa entre governo e empreiteir­as

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