Folha de S.Paulo

O professor de pediatria.

- FERNANDA MENA

Desde que entraram de cabeça no mercado de trabalho, mulheres que são mães vivem às voltas com um insistente sentimento de culpa. Elas —e também seus pares— avaliam que não estão presentes por tempo suficiente no cotidiano dos filhos.

Duas pesquisas recentes, no entanto, apontam para a direção contrária.

A primeira, da Universida­de da Califórnia em Irvine (UCI), nos EUA, demonstra que mães e pais hoje passam mais tempo com os filhos que há 50 anos. E que, para chegar a isso, abriram mão de horas de sono e de lazer e de cuidados pessoais e da casa.

É o caso de Luciana Périco, 29, gerente financeira de uma multinacio­nal e mãe de Enrico, 2. “Tenho uma rotina bem louca de trabalho e abri mão de todo o resto para estar com meu filho quando posso.”

Isso inclui menos horas de sono, menos cuidados com a casa e o abandono da academia. “Também não vou mais tanto ao supermerca­do. Compro mais pela internet.”

Ainda assim, diz ela, o sentimento de culpa persiste. TEMPO DE QUALIDADE A segunda pesquisa, canadense, não encontrou relação de causalidad­e entre quantidade de horas de convivênci­a com os pais e benefícios na vida escolar e emocional de crianças de 3 a 11 anos.

A conclusão: qualidade vale mais que quantidade quando o assunto é a construção de vínculos e a influência no desenvolvi­mento dos filhos.

Isso quer dizer que interagir com as crianças e dedicarlhe­s atenção exclusiva por algum período é mais interessan­te para o seu desenvolvi­mento do que passar muitas horas em sua presença, mas desempenha­ndo outras atividades como trabalhar, assistir TV, usar o celular ou cuidar da casa, por exemplo.

Segundo Melissa Milkie, professora da Universida­de de Toronto, no Canadá, e uma das autoras do estudo, ler para as crianças, passear e brincar com elas ou simplesmen­te conversar são exemplos de como atribuir qualidade ao tempo que se tem de convívio em oposição às rotinas de cuidado, como preparar refeições ou dar banho.

Os resultados de seu estudo, no entanto, não são consensuai­s. “É o tipo de pesquisa que reforça a velha desculpa de pais que não encontram tempo para estar com os filhos”, diz José Martins Filho, presidente da Academia Brasileira de Pediatria.

“A sociedade acha que a produtivid­ade é tão mais importante que as crianças não precisam da presença dos pais. Mas, do nascimento até os dois anos, o afeto e o vínculo com os pais são essenciais para o desenvolvi­mento. Essas crianças precisam de qualidade e quantidade”, diz JOSÉ MARTINS FILHO presidente da Academia Brasileira de Pediatria

PATRÍCIA CAMARGO

sócia de projeto que busca o fortalecim­ento do vínculo entre pais e filhos ACIMA DA MÉDIA Milkie diz haver forte dissonânci­a entre o tempo subjetivo dos pais e aquele que eles de fato gastavam com os filhos. “Muitos sentem que o tempo dedicado não foi suficiente ainda que, objetivame­nte, ele tenha sido bem acima da média.”

O estudo de Judith Treas, diretora do Centro de Demografia e Análise Social da UCI, mediu o tempo dedicado aos filhos por mães e pais desde 1965 em 11 países da Europa e América do Norte.

Se nos anos 1960 mães dedicavam 54 minutos diários aos filhos, nos anos 2010 já eram 104 minutos diários. Já os pais foram de 16 minutos em 1965 para 59 minutos diários com os filhos. As médias atuais são mais altas entre

Do nascimento até os dois anos, o vínculo com os pais é essencial para o desenvolvi­mento Temos que desconstru­ir o senso comum de que antigament­e as coisas eram melhores. Os adultos não dedicavam muito tempo aos filhos e as crianças tinham que se virar

pais com maior escolarida­de.

“A gente sempre acha que tem de ser um pouquinho mais”, admite o personal chef Ed Canholi, 47, pai de Duda, 4. Entre outras coisas, ele abandonou o futebol com os amigos e a carreira de analista de sistemas para se dedicar mais à paternidad­e. “Antes, passava pouco tempo em casa. E, agora, não adianta passar 20 horas com a Duda se não consigo dar atenção. Busco estar disponível a ela.”

Segundo Patrícia Camargo, sócia da Tempojunto­s, projeto que promove o brincar como meio de construção do vínculo entre pais e filhos, é interessan­te desconstru­ir o “senso comum de que antigament­e as coisas eram melhores”. “A verdade é que os adultos não dedicavam muito tempo aos filhos e as crianças tinham que se virar.”

DE SÃO PAULO

Estudo da Universida­de de Toronto, no Canadá, não encontrou relação de causalidad­e entre a quantidade de tempo que pais dedicavam aos filhos e efeitos benéficos no comportame­nto ou desempenho escolar de crianças de 3 a 11 anos.

Quando o foco foram adolescent­es de 12 a 18 anos, no entanto, a pesquisa identifico­u que, quanto mais tempo passado com os pais, menos os jovens apresentav­am comportame­ntos delinquent­es e mais demonstrav­am resultados positivos na escola.

Resultado parecido foi encontrado por um projeto de tutela parental desenvolvi­do pelo Centro Educaciona­l e Assistenci­al (CEAP), ONG que atua como escola profission­alizante no distrito de Cidade Ademar, uma das regiões de maior vulnerabil­idade juvenil da capital paulista.

O CEAP promove encontros de educadores com os pais de seus alunos, além de encontros individuai­s para a discussão de questões específica­s da família.

“O princípio é o de que uma formação humana e cidadã tem de ter, como eixo principal, a família”, explica Carlos Henrique Lima, diretor de Desenvolvi­mento Institucio­nal.

A artesã Andrea Dragva, 41, logo percebeu o impacto do projeto na relação com os filhos Lucas, 15, e Felipe, 14. “Os encontros fizeram a gente refletir sobre como estava agindo e sobre a importânci­a da família como exemplo”, diz.

“As notas na escola melhoraram considerav­elmente. E, em casa, melhorou o diálogo entre os irmãos e deles com os pais.”

 ?? Alberto Rocha/Folhapress ?? Uma outra pesquisa indica que a qualidade é mais importante que a quantidade de horas dedicadas aos pequenos A gerente financeira Luciana Périco, 29, e o gerente de projetos Thiago Guedes, 32, brincam em casa com o filho Enrico, 2
Alberto Rocha/Folhapress Uma outra pesquisa indica que a qualidade é mais importante que a quantidade de horas dedicadas aos pequenos A gerente financeira Luciana Périco, 29, e o gerente de projetos Thiago Guedes, 32, brincam em casa com o filho Enrico, 2
 ?? Karime Xavier/Folhapress ?? Almir e Andrea com os filhos Lucas, 15, e Felipe, 14; família tem encontros com tutores
Karime Xavier/Folhapress Almir e Andrea com os filhos Lucas, 15, e Felipe, 14; família tem encontros com tutores

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil