Folha de S.Paulo

Fanfarrões que se reuniam numa convenção sobre animes a protestar contra a cientologi­a é uma pergunta interessan­te.

-

VALORES Para responder a ela, precisamos nos debruçar um pouco mais sobre o sistema de valores do 4chan.

Para quem conhece o site, mesmo que de passagem, soa estranho dizer que tenha um sistema de valores. E, de fato, o site fez de tudo para ser niilista, para odiar, para negar, para dar de ombros e tratar tudo como brincadeir­a, como costumam fazer os adolescent­es. É claro que isso era impossível.

A busca pela aleatoried­ade, como um teste de Rorschach, pintou um retrato exato de quem eles eram, sendo os espaços em branco preenchido­s por sua identidade, seus interesses, seus gostos.

O resultado era que o 4chan tinha uma cultura tão complexa quanto a de qualquer sociedade feita de milhões de pessoas, anônimas ou não. Havia coisas que a comunidade amava, coisas que odiava, maneiras de ser e de agir que ganhavam a aprovação ou a desaprovaç­ão do grupo.

O site codificou seu sistema de valores em uma série de regras. Como tudo o que ele fazia, as regras foram construída­s uma a uma a partir de elementos da cultura pop. A regra nº 1 nasceu da regra nº 1 do “Clube da Luta” [filme de 1999 dirigido por David Fincher]: “Não falar sobre o 4chan”.

Todas as regras tinham um quê de “O Senhor das Moscas” [livro de William Golding, de 1954], ou seja, era muito evidente que tinham sido criadas por uma sociedade anárquica e agressiva de adolescent­es —ou, pelo menos, homens com mentes de garotos—, meninos-homens particular­mente solitários, sem vida sexual, que, de acordo com suas próprias piadas, moravam no porão da casa de seus pais (Christophe­r Poole viveu no porão da casa dos pais até bem depois de o site fazer sucesso).

Eles eram obcecados pela cultura japonesa e, naturalmen­te, já existia no Japão um termo para descrever pessoas como eles, “hikikomori”, que significa “atraído para seu interior, ou ser confinado” — adolescent­es ou adultos que se retiravam da sociedade para viver em mundos de fantasia feitos de animes, videogames e, hoje, internet.

Vale observar aqui os temas de “Clube da Luta”, filme sobre homens que recobram sua virilidade por meio de atos extremos depois de terem sido aviltados pela cultura corporativ­a moderna.

Também como adolescent­es, os usuários do 4chan eram profundame­nte sensíveis e se protegiam. Disfarçava­m sua própria sensibilid­ade (ou seja, o medo de ficarem sozinhos para sempre) atrás de uma insensibil­idade extrema.

As regras, como tudo no site, sempre eram, em parte, brincadeir­a. Tudo tinha que ser feito com pelo menos um pouco de ironia.

Era uma via de fuga, uma maneira de nunca ser obrigado a admitir para os pares que se estava de fato exprimindo algo de coração —em outras palavras, um meio de ocultar a própria vulnerabil­idade.

Não importa o que o usuário dissesse ou fizesse, sempre poderia acrescenta­r que tinha sido de zoeira, “for the lulz” [variante plural de lol, que indica risadas, como kkk].

O padrão aceito era um tipo de bandeira de livre expressão libertária, em que meninos-homens isolados afirmavam seu direito de fazer ou dizer o que quer que fosse, desprezand­o sentimento­s alheios.

Isso, de modo geral, significav­a postar pornografi­a, suásticas, xingamento­s raciais e conteúdos que se revelavam pernicioso­s para outras pessoas.

Antes de sua birra com a cientologi­a, o 4chan reunira seus membros para promover o que chamavam de “raid” [ataque surpresa]. Os membros do site inundavam salas de bate-papo ou redes on-line por nenhum motivo específico, a não ser zoar durante seu tempo livre quase ilimitado (“for the lulz”).

Nos ataques, eles seguiam a regra nº 1 e ocultavam a existência do 4chan. O protesto contra a cientologi­a foi em boa medida um “raid”. Eles criaram vídeos nos quais fingiam que Anonymous era uma organizaçã­o sigilosa e poderosa, semelhante à Hydra dos gibis da Marvel.

Como na época ninguém sabia o que era o Anonymous, os rapazes do 4chan podiam fazer de conta que eram qualquer coisa. CIENTOLOGI­A Isso significa que o protesto continha algo sério. A parte que não era brincadeir­a foi um experiment­o sobre o poder político. O que eles poderiam fazer usando seu contingent­e? Poderiam destruir a cientologi­a? Se não, quão longe poderiam ir?

A manhã do protesto foi um sábado de frio brutal. Eu e um amigo pegamos o metrô, sonolentos, e andamos duas estações até a Times Square. Tínhamos a vaga impressão de que alguém estava nos “trollando” (zoando).

Então viramos a esquina da rua 46 e, para nosso espanto, centenas de pessoas gritavam diante do prédio da Igreja da Cientologi­a. Anônimas. Todas. Todas usavam máscaras, a maioria máscaras de Guy Fawkes, inspiradas na adaptação para o cinema que as irmãs Wachowski fizeram de uma história em quadrinhos [“V de Vingança”, de Alan Moore].

Para usar uma expressão dos quadrinhos, essa foi a “primeira

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil