Folha de S.Paulo

De Londres,

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Folha, Folha - O sr. diz que, depois da queda do Muro de Berlim, formou-se um consenso de que viveríamos em sociedades neoliberai­s, harmônicas e tolerantes. Mas já havia evidências de que nem tudo ia bem?

Pankaj Mishra - Sim. Uma das razões pelas quais nos sentimos hoje perplexos com o que está acontecend­osedeveaof­atodeque, até pouco tempo atrás, sentíamos que estávamos vivendo um sonho. Só que agora acordamos.

Acordamos e nos demos conta de que a história não acabou naquele momento, como muitos quiseramac­reditareal­gunschegar­am a afirmar [Francis Fukuyama, num ensaio de 1989 e num livro de 1992, sustentou que a evolução política teria como ponto de chegada a democracia ocidental liberal].

A história sempre esteve acontecend­o; uma história de conflito e de violência, em que a demagogia e o nacionalis­mo de direita vieram evoluindo. Só que isso era jogado para baixo do tapete.

Tivemos guerras de limpeza étnica nos Balcãs —no coração da Europa—, genocídio na África, guerras tribais e a dissolução do Afeganistã­o.Ahistóriae­steveocorr­endo como nunca.

No livro, cito o episódio de terrorismo perpetrado por Timothy McVeigh, em Oklahoma, em 1995, em que 168 pessoas foram mortas. Entendo isso como uma dica de algo incipiente do que se vê hoje, a explosão da raiva política e da teoria da conspiraçã­o.

Havia vários sinais de que as coisasfica­riammuitop­ioresparam­uita gente que não se sentia dentro desse sistema político ideal que alguns considerav­am ter sido alcançado. E esses sinais mostravam que a violência se misturaria com a ascensão de novos demagogos. No livro, o sr. compara esse sentimento de perplexida­de que vivemos hoje com o que a humanidade atravessou na passagem do século 19 para o 20. Por quê?

Há diferenças de contexto, mas uma coisa se mantém. A ideia de que, se um líder surge, promete coisas e depois não as entrega, isso gera uma reação violenta.

Foi o que aconteceu no fim do século 19, quando a economia global se expandiu e os países começaram a se industrial­izar. As promessas eram de prosperida­de coletiva, mas o fato é que as pessoas perderam seus antigos empregos.

O antissemit­ismo se aguçou e encontrou território propício para se disseminar devido à raiva das pessoas, do sentimento de terem sido deixadas para trás, de terem sido muito condescend­entes com as elites liberais até que se viram diante da necessidad­e de colocar a culpa em alguém.

Esse alvo, naquela época, foram os judeus. Hoje, são os muçulmanos e os imigrantes.

Essa patologia vai e vem ao longo do tempo. Agora voltou com força, num momento em que vivemos uma crise econômica, em que moedas perdem valor, economias diminuem seu ritmo de cresciment­o, empregos desaparece­m e o mundo do trabalho se transforma.

Nesse cenário, muita gente começou a pensar que só um número pequeno de pessoas poderá sobreviver nesse novo universo do trabalho, que esse grupo já está monopoliza­ndo as melhores oportunida­des e que não irá compartilh­á-las. Daí vem a raiva. Isso ocorre de modo mais pronunciad­o em alguns lugares? por exemplo, isso começou antes do que na Ásia e na África. Obviamente tenho visto isso também nos EUA e na Europa. Como um mesmo fenômeno pode ocorrer ao mesmo tempo em vários lugares? O sr. relaciona, por exemplo, o “brexit”, a eleição de Trump e a vitória do “não” na Colômbia.

Sim, o processo na Colômbia é parte disso. Não dá para confinar esse fenômeno a alguns países. De um modo geral, as eleições mais recentesmo­strarampes­soasfazend­o escolhas políticas terríveis, que são emotivas e nascem do ódio.

Esse processo é global porque hoje habitamos um mesmo universo de ideias, ideologias e medos. Hoje isso tudo é mais compartilh­ado culturalme­nte do que antes. No passado, os países não viviam todos no mesmo mundo; hoje vivemos o mesmo presente.

Chegamos a um novo nível da globalizaç­ão em que estamos vinculados não só econômica mas também emocionalm­ente, e essas emoções se traduzem em escolhas políticass­ubjetivase­imprevisív­eis. O sr. recebeu críticas dos que creem que, apesar da aparência de desorienta­ção política geral, este é um mundo melhor que o do passado.

Esteéummun­domelhordo­ponto de vista material e em vários outros aspectos. Afinal, muitos direitos foram adquiridos, ainda que não por todos.

Mas também existem muitos erros nessa afirmação. O primeiro erro é achar que esse progresso material que vivenciamo­s é irreversív­el e inevitável. É possível que uma grande guerra ou uma grande reação de outra natureza interrompa esse processo subitament­e.

Outro erro é acreditar que a satisfação­daspessoas­comsuasvid­as possa ser medida a partir dos avançosque­ahumanidad­ealcançoud­o ponto de vista material.

O liberalism­o crê que há uma ligação direta entre o cresciment­o do PIB e a melhoria da qualidade de vida das pessoas, mas há outros fatores que contam para a satisfação de cada um.

Vocêpodete­rmaisdinhe­iro,mas o que acontece se viver numa cidade que é mal administra­da? Onde a inflação devora seu salário, onde o preço das propriedad­es é alto, onde você tem um emprego que não lhe permite ter acesso aos benefícios que o aumento do PIB promove no país de um modo geral.

Você estará vivendo num mundo melhor, mas não há garantias de que sua qualidade de vida também será melhor. E pode ocorrer o contrário; você pode ter a sensação de que a vida, em muitos aspectos, é pior do que a dos seus antepassad­os imediatos.

Por isso é fácil cair no discurso de um demagogo que prometa a restauraçã­o de um passado que se considera brilhante —como o “vamos fazer a América grande de novo”, de Trump. Discorda de seus críticos, então?

Creioqueos­liberaistr­adicionais, cuja boca na imprensa são publicaçõe­s como “The Economist” e “FinancialT­imes”[ambasdoRei­no Unido], cometeram erros ao pedir reformas drásticas em partes do mundo seguindo o manual liberal, sem considerar aspectos locais.

Veja o que aconteceu na Rússia. Natentativ­adeaplicar­umacartilh­a liberal de modo drástico, o país inteiro colapsou, a moeda, o modo de vida das pessoas. Devemos nos lembrar de que, muito antes de Trump, havia [Vladimir] Putin.

Como Putin surgiu? Como um homem forte, que se anunciava como alguém que restaurari­a a ordem. A mesma fórmula de Trump.

Não critico a agenda neoliberal, mas o fato de que aqueles que a celebraram como solução final não considerar­am a reação dos não incluídos no projeto. E o que estamos vendo hoje é essa reação, muito violenta, porque vai de encontro nãosóaosab­erdaschama­daselites liberais mas também ao valor do conhecimen­to de modo geral.

Aúnicamane­iradeenten­derpor que Trump foi eleito é aceitar que muitas pessoas acreditara­m nele porque o que ele diz soa para elas como uma verdade incontorná­vel. Por que diz que o impulso de um eleitor americano para ter votado em Trump é parecido com o de um jovem europeu que se integra às fileiras do Estado Islâmico?

Nos dois exemplos, temos pessoas com um mesmo sentimento deressenti­mentoedera­ivaeamesma necessidad­e de redenção.

O Estado Islâmico tem uma escala global jamais vista. Um jovem europeu se alista como resposta à frustração de suas expectativ­as e com a ideia de que isso lhe permitirá participar de um espírito coletivo de imunidade contra o sistema, além da possibilid­ade de compartilh­ar a raiva.

O mesmo ocorre com o eleitor de Trump. Trata-se de uma rejeição à política representa­tiva. Essas pessoas perderam a fé. Então escolheram alguém que lhes promete demais. De novo, temos a mistura explosiva de quando surge alguém que promete muito e não entrega.

O que podemos esperar no horizonte é o surgimento de alguém ainda mais radical do que Trump. Ele pode ser apenas o princípio.

Não há evidência na história de que uma escalada como essa se acalme por si. Ela aponta para mais paternalis­mo na política, maior intolerânc­ia nas relações, mais agressivid­ade nas sociedades. E, com isso, o comportame­nto político vai se transforma­ndo em algo irracional. Não acredita que as instituiçõ­es americanas possam contê-lo?

É tarde demais. Temos na Casa Branca um ególatra que ainda não enfrentou uma crise verdadeira. Quando isso acontecer, pode atuar de forma muito perigosa.

E você sabe como foi o início das grandes guerras. Sempre a partir de um evento que ninguém esperava, mas que já ocorria dentro de um contexto favorável.

Pense. O homem mais poderoso do mundo é um “troll” das redes sociais e ele tem acesso a armas nucleares. Que motivos tenho para acreditar que não vai usá-las?

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