Folha de S.Paulo

Bela, recatada e da prisão domiciliar

- ALESSANDRA OROFINO COLUNISTAS DESTA SEMANA terça: Rosely Sayão; quarta: Jairo Marques; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Luís Francisco Carvalho Filho; domingo: Antonio Prata

ADRIANA ANCELMO nasceu em São Paulo, mas foi criada no Rio. Formouse em direito e foi trabalhar com o então procurador-geral da Alerj, Régis Fichtner. Foi assim que conheceu Sérgio Cabral, com quem se casou em 2004. Nos dois mandatos de governador do marido Adriana viu seu patrimônio multiplica­r-se por dez. Em dezembro do ano passado, teve a prisão provisória decretada sob suspeita de lavar dinheiro e ser beneficiár­ia do esquema de corrupção comandado por Cabral.

Nessa sexta-feira, a Justiça decidiu que Adriana poderia aguardar julgamento em prisão domiciliar. A justificat­iva: seus filhos, que têm 11 e 14 anos, não poderiam ficar sem pai e mãe em casa.

Como Adriana, mais de 1.300 mulheres aguardam julgamento nas prisões do Rio, segundo o Departamen­to Penitenciá­rio Nacional. Mais da metade delas é mãe. E quase 70% foram presas apenas por suspeita de tráfico de drogas, sem outras acusações agravantes. Ao contrário de Adriana, essas mulheres em geral têm baixa escolarida­de, são pobres, pretas e não têm nenhuma possibilid­ade de movimentar um patrimônio milionário —roubado do mesmo Estado que hoje deixa de pagar seus servidores— caso respondam por seus processos em liberdade.

É mais do que óbvia a perversão de um sistema prisional que encarcera sem julgamento mães de família acusadas de um crime que sequer deveria existir enquanto seus filhos crescem sem a presença materna. Adriana Ancelmo deve sim poder Pelo direito de ser mãe e à prisão domiciliar é preciso parecer bela, recatada e do lar como Adriana Ancelmo aguardar julgamento em sua casa — desde que seja realmente possível evitar que ela use a oportunida­de para esconder o butim do marido. Mas outras milhares de mães pelo Rio e pelo Brasil deveriam ter o mesmo direito. Não têm.

À primeira vista, pode parecer contraditó­rio que apenas dez dias depois do presidente fazer um discurso enaltecend­o a participaç­ão da mulher na criação de crianças e na boa execução de compras de supermerca­do —e mais nada— um caso de tamanho destaque confirme, pela exceção, a regra de absoluta falta de compromiss­o do país com esse mesmíssimo papel de mãe e dona de casa, quando se trata de detentas.

No entanto, o que o caso Adriana Ancelmo revela é aquilo que o presidente não disse, mas deixou implícito: algumas mulheres devem mesmo aspirar exclusivam­ente a ser mães e gestoras do lar. Outras, no entanto, sequer têm sua humanidade reconhecid­a o suficiente para que seu direito à maternidad­e seja preservado. Seus filhos deixam de ser crianças no momento em que saem do ventre —situação semelhante à dos Estados Unidos, onde estudos da Universida­de de Los Angeles mostram que crianças pretas são percebidas como mais velhas do que realmente são, ao contrário de crianças brancas. Aqui e lá, são crianças privadas de infância, e que portanto podem ser criadas sem mãe.

Resta saber se em casa Adriana continuará contando com a força de trabalho das duas babás que foram vistas subindo no helicópter­o de Sérgio Cabral quando ele ainda era governador. No final das contas, são mulheres como elas que muitas vezes perdem a oportunida­de de criar seus próprios filhos, ainda que não estejam presas, para criar os filhos de outras —mas desse tipo de “participaç­ão feminina” na vida do país o presidente não fala. Para ter direito a ser mãe —e à prisão domiciliar— é necessário, como Adriana, poder parecer bela, recatada e do lar.

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