Bela, recatada e da prisão domiciliar
ADRIANA ANCELMO nasceu em São Paulo, mas foi criada no Rio. Formouse em direito e foi trabalhar com o então procurador-geral da Alerj, Régis Fichtner. Foi assim que conheceu Sérgio Cabral, com quem se casou em 2004. Nos dois mandatos de governador do marido Adriana viu seu patrimônio multiplicar-se por dez. Em dezembro do ano passado, teve a prisão provisória decretada sob suspeita de lavar dinheiro e ser beneficiária do esquema de corrupção comandado por Cabral.
Nessa sexta-feira, a Justiça decidiu que Adriana poderia aguardar julgamento em prisão domiciliar. A justificativa: seus filhos, que têm 11 e 14 anos, não poderiam ficar sem pai e mãe em casa.
Como Adriana, mais de 1.300 mulheres aguardam julgamento nas prisões do Rio, segundo o Departamento Penitenciário Nacional. Mais da metade delas é mãe. E quase 70% foram presas apenas por suspeita de tráfico de drogas, sem outras acusações agravantes. Ao contrário de Adriana, essas mulheres em geral têm baixa escolaridade, são pobres, pretas e não têm nenhuma possibilidade de movimentar um patrimônio milionário —roubado do mesmo Estado que hoje deixa de pagar seus servidores— caso respondam por seus processos em liberdade.
É mais do que óbvia a perversão de um sistema prisional que encarcera sem julgamento mães de família acusadas de um crime que sequer deveria existir enquanto seus filhos crescem sem a presença materna. Adriana Ancelmo deve sim poder Pelo direito de ser mãe e à prisão domiciliar é preciso parecer bela, recatada e do lar como Adriana Ancelmo aguardar julgamento em sua casa — desde que seja realmente possível evitar que ela use a oportunidade para esconder o butim do marido. Mas outras milhares de mães pelo Rio e pelo Brasil deveriam ter o mesmo direito. Não têm.
À primeira vista, pode parecer contraditório que apenas dez dias depois do presidente fazer um discurso enaltecendo a participação da mulher na criação de crianças e na boa execução de compras de supermercado —e mais nada— um caso de tamanho destaque confirme, pela exceção, a regra de absoluta falta de compromisso do país com esse mesmíssimo papel de mãe e dona de casa, quando se trata de detentas.
No entanto, o que o caso Adriana Ancelmo revela é aquilo que o presidente não disse, mas deixou implícito: algumas mulheres devem mesmo aspirar exclusivamente a ser mães e gestoras do lar. Outras, no entanto, sequer têm sua humanidade reconhecida o suficiente para que seu direito à maternidade seja preservado. Seus filhos deixam de ser crianças no momento em que saem do ventre —situação semelhante à dos Estados Unidos, onde estudos da Universidade de Los Angeles mostram que crianças pretas são percebidas como mais velhas do que realmente são, ao contrário de crianças brancas. Aqui e lá, são crianças privadas de infância, e que portanto podem ser criadas sem mãe.
Resta saber se em casa Adriana continuará contando com a força de trabalho das duas babás que foram vistas subindo no helicóptero de Sérgio Cabral quando ele ainda era governador. No final das contas, são mulheres como elas que muitas vezes perdem a oportunidade de criar seus próprios filhos, ainda que não estejam presas, para criar os filhos de outras —mas desse tipo de “participação feminina” na vida do país o presidente não fala. Para ter direito a ser mãe —e à prisão domiciliar— é necessário, como Adriana, poder parecer bela, recatada e do lar.