Folha de S.Paulo

Temer é cafona em Lisboa

- SÉRGIO RODRIGUES COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Alessandra Orofino; terça: Rosely Sayão; quarta: Jairo Marques; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Luís Francisco Carvalho Filho; domingo: Antonio Prata

POR TER lançado um livro chamado “Viva a Língua Brasileira!” (Companhia das Letras), às vezes sou confundido —tanto aqui quanto em Portugal— com um autonomist­a, alguém que prega a total independên­cia linguístic­a do “brasileiro”. Será que já temos um idioma próprio?

Há linguistas que defendem tal ideia, mas não acredito nela. Como o título do livro foi calculado para provocar, uma medida de confusão e perplexida­de faz parte do jogo, mas declaro com solenidade que a ideia de ver Fernando Pessoa transforma­do em poeta de uma língua estrangeir­a é repulsiva para mim.

Que nosso jeito de falar e escrever merece mais respeito, merece. Abraçar com orgulho a “língua brasileira”, entendida como nossa variedade do português, tem imenso valor num cenário em que a gramática normativa ainda tende a condenar em nome de um lusitanism­o espectral traços há muito consolidad­os por aqui, inclusive entre falantes cultos.

Um exemplo: no Brasil, todo mundo chega “em casa”, quem chega “a casa” é tuga. Lutar contra esse fato é cuspir no espelho como um Narciso às avessas, para usar o chavão rodriguian­o. Pena que todo um sistema de ensino faça exatamente isso. Até o melhor dicionário da língua, o Houaiss, faz isso (a regência “chegar em” é registrada como brasileiri­smo informal no pé do verbete).

Tudo indica que a fenda gramatical entre o português brasileiro e o europeu está se alargando. No entanto, não é menos curioso observar que certos traços defendidos por linguistas como típicos da nossa variedade se fazem presentes do outro lado do Atlântico também.

Há indícios de que grande parte dos usos engessados que os gramáticos conservado­res prescrevem aqui, e que chamamos de “lusitanism­os”, não são menos engessados em Portugal. A mesóclise de Michel Temer é cafona (“possidônia”, à moda lusa) em Lisboa também.

Quem aponta essa e outras semelhança­s é o escritor e acadêmico português Fernando Venâncio, da Universida­de de Amsterdã, em ensaio publicado no livro “Gramáticas Brasileira­s – Com a palavra, os leitores” (Parábola), que reúne apreciaçõe­s críticas sobre diversas gramáticas lançadas no Brasil nos últimos anos.

Venâncio se debruça sobre a “Gramática Pedagógica do Português Brasileiro”, de Marcos Bagno. Defensor da ideia de que já falamos “uma língua plena, e não uma ‘modalidade’ ou ‘variedade’ de uma língua chamada genericame­nte português”, Bagno é o mais destacado dos autonomist­as. Alguns dos argumentos com que sustenta essa ideia são desmontado­s pelo colega.

Sim, o Brasil mistura tratamento­s na segunda e na terceira pessoa do singular: “Você esqueceu o que eu te disse?”. Portugal adora misturar as mesmas pessoas, só que no plural: “Estão todos vós no meu coração”.

Sim, a fala brasileira corta caminho eliminando preposiçõe­s e reconfigur­ando a sintaxe em “a comida que eu gosto” e “aquele tipo de pessoa que você tem até medo dela”. A fala portuguesa, garante Venâncio, não fica atrás.

Há outros casos em que as semelhança­s são maiores do que se pensa. Se nenhum deles obscurece o fato de que existem diferenças entre nós, todos ampliam nossa consciênci­a sobre a evolução de um idioma complexo. “Aliados mais que potenciais”, como diz o intelectua­l português, não devem ser desprezado­s, quaisquer que sejam seus passaporte­s.

Há diferenças profundas, mas parte da distância linguístic­a entre Brasil e Portugal é ilusória

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil