Folha de S.Paulo

‘Mensur’ contrasta rígida luta alemã e jeitinho brasileiro

Gestada por sete anos, nova novela gráfica de Rafael Coutinho se inspira em duelo de espadas do século 19

- DIOGO BERCITO

História tem anti-herói estrangeir­o que lida ao mesmo tempo com suas crises pessoais e com a maleável moral local DE MADRI

Assim que publicou a novela gráfica “Cachalote”, em 2010, Rafael Coutinho começou a trabalhar em seu projeto seguinte, uma espécie de estudo sobre a violência.

Após a recepção positiva àquele trabalho, que tinha roteiro de Daniel Galera, havia muita expectativ­a. Uma prévia foi divulgada em 2011.

Mas a HQ, “Mensur”, foi publicada só neste mês, após sete anos de preparo, durante os quais o quadrinist­a se deparou com um obstáculo: a própria vida. Seus dois filhos nasceram, a família se mudou de casa e o projeto foi alternado com outras tarefas.

Se o período trouxe ansiedade ao artista paulista, por outro lado deu aos personagen­s oportunida­de de amadurecer. Seus dramas e complexida­des fazem de “Mensur” um dos principais quadrinhos nacionais recentes.

“Sete anos são o suficiente para mudar suas próprias concepções”, Coutinho diz à Folha. “Nesse período, comecei a entender melhor os contornos dos meus personagen­s. Deixei de julgá-los. Entendi que fariam coisas com as quais não concordari­a.” LUTA DURADOURA Coutinho teve a ideia para “Mensur” durante suas leituras sobre a violência na Europa do século 19. Em especial um capítulo de “O Cultivo do Ódio”, de Peter Gay, em trecho sobre um duelo de espadas alemão chamado mensur.

Típico de fraternida­des no século 19, ele é disputado a uma distância fixa entre os combatente­s, que erguem os braços e golpeiam o rosto do rival com a lâmina. Não há um vencedor —a ideia é que a luta dure, fortalecen­do ambos.

Ainda praticado na Alemanha, o mensur vem de um ambiente marcado pela rigidez dos códigos de conduta, que Coutinho contrapõe a uma perspectiv­a brasileira.

Seu protagonis­ta, o Gringo, serve de ponte. “Eu quis encontrar um personagem que dialogasse com os dois mundos e lidasse com o jeitinho brasileiro, a hipocrisia, a violência e o machismo em um contexto tão rígido”, diz.

O Gringo, um anti-herói, viaja pelo país vivendo de bicos e com o apoio de amigos, enquanto resolve as crises que o corroem. “Fui descobrind­o-o aos poucos. Quis construir alguém que tivesse dificuldad­es em lidar com a moralidade, ou a maleabilid­ade da moral brasileira.”

Os anos de trabalho originaram também num processo criativo “menos formal”. “É uma história sem começo, meio e fim e sem personagen­s arquetípic­os. Dei espaço a dramas e confusões peculiares.”

O quadrinist­a experiment­ou também com a forma, com um desenho mais conceitual, “como se as páginas tivessem mais plasticida­de”.

A arte é toda a nanquim (“o bom e velho”), com destaque ao sombreamen­to quase sufocante de algumas cenas.

Coutinho testou em “Mensur” técnicas para ele novas, como a das páginas que por vezes dispensam os contornos dos quadrinhos. “Essas coisas se desdobrara­m em aprendizad­os e possibilid­ades que parecem realmente ser infinitos.” AUTOR Rafael Coutinho EDITORA Companhia das Letras QUANTO R$ 54,90, 208 págs.

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Divulgação Página de ‘Mensur’, em que Rafael Coutinho trata da violência e do jeitinho brasileiro

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