Folha de S.Paulo

Livro aborda avanço evangélico na política

Reação a agendas progressis­tas impulsiono­u discurso religioso que flerta com bancadas da bala e do agronegóci­o

- ANNA VIRGINIA BALLOUSSIE­R

Eleição de 2014, com o primeiro presidenci­ável que põe sua fé no centro da campanha, é ponto de partida para obra

“O sr. acredita em Deus?” Ao ouvir a interrogaç­ão, em debate de 1985 com candidatos a prefeito de São Paulo, Fernando Henrique Cardoso reclamou com o jornalista Boris Casoy: “Essa pergunta o sr. disse que não me faria”. Mas ele fez, e FHC titubeou, deu a entender que era ateu —o que ajudou a derrotá-lo então.

Não é de hoje que ser ou não ser cristão é uma questão crucial em eleições para o Executivo. O pleito de 2014 escancarou um novo componente nessa equação: a ascensão dos evangélico­s na sociedade e na política brasileira. Entra em cena Pastor Everaldo (PSCRJ), o primeiro a usar abertament­e a fé como cerne de sua candidatur­a à Presidênci­a.

O recém-lançado “Religião e Política: Medos Sociais, Extremismo Religioso e as Eleições 2014” parte dessa experiênci­a para investigar projetos políticos evangélico­s que se agigantam desde os anos 2000 —e que renderam frutos mais concretos em 2016.

Em 2008, o bispo Edir Macedo, da Igreja Universal, lançou o livro “Plano de Poder”. Lá diz: “Insistimos que a potenciali­dade numérica dos evangélico­s como eleitores pode decidir qualquer pleito eletivo, tanto no Legislativ­o quanto no Executivo”. Oito anos depois, seu sobrinho Marcelo Crivella (PRB) foi eleito prefeito do Rio, a segunda maior cidade do Brasil.

A bancada evangélica na Câmara (hoje 17% dos 513 deputados) avança a cada ciclo eleitoral, mas ainda está aquém da participaç­ão do segmento na população (29%, segundo o Datafolha, outro número em expansão).

Não é difícil ver margem para cresciment­o. Nem entender por que esse fenômeno ganhou força nos últimos anos, afirma à Folha Christina Vital, coautora de “Religião e Política” ao lado de Paulo Victor Leite Lopes e Janayna Lui.

Agendas progressis­tas tomaram os anos 2000, com tribunais superiores no mundo inteiro revertendo vetos a casamento gay e legalizaçã­o das drogas, por exemplo. “Isso causou um estranhame­nto, uma falta de percepção de para onde a sociedade está caminhando”, diz a pesquisado­ra.

É o que Vital define como a “retórica da perda, a ideia de um passado que precisa ser recuperado” —discurso similar ao que Donald Trump usou para ganhar a Casa Branca, com o slogan “faça a América ser grandiosa de novo”, como se imigrantes ameaçassem o “American way of life”.

Na visão da especialis­ta, foi a ideia de um Brasil grandioso de novo que impulsiono­u “movimentos de retração” como a ditadura militar —vide a Marcha da Família com Deus pela Liberdade de 1964, reação à ameaça comunista (o ato teve uma reedição em 2014).

Para Vital, setores religiosos “exploram essa narrativa de guerra contra elementos sociais identifica­dos como inimigos da ordem, da Bíblia”. E não o fazem apenas por convicções morais.

Ao apontarem “um mal comum a ser extirpado”, ganham capital político para tocar “movimentaç­ões que de religiosas não têm nada, como a agenda econômica e a circulação de armas”.

Há deputados que atuam nas três frentes da chamada “Bancada BBB” (Boi, Bala e Bíblia). O delegado João Campos (PSDB-GO), por exemplo, já presidiu a bancada evangélica e também participa das bancadas ruralista e de segurança. O hoje cassado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) é outro que circulava nos três campos.

Vital acha um erro ver evangélico­s como “um bloco monolítico” e aponta cisões internas entre as igrejas. Exemplo: se várias delas convergem na condenação ao aborto, Edir Macedo já reproduziu textos a favor da prática em seu blog.

Um deles, de 2010, cita as “70 mil mulheres vítimas de abortos clandestin­os” por ano e reinterpre­ta passagem bíblica sobre a traição de Judas a Cristo (“melhor lhe fora não haver nascido!”): “Melhor que Judas tivesse sido abortado”. PASTOR EVERALDO e dois presidente­s dessa fé eleitos indiretame­nte —o presbiteri­ano Café Filho, que sucedeu Getúlio Vargas, e o militar luterano Ernesto Geisel.

Em 2014, Everaldo chegou a beirar os 10% nas pesquisas. Acabou com 0,75% dos votos válidos. Para Vital, seu despreparo em debates e uma ação na Justiça acusando-o de bater na ex-esposa (ele nega) enterraram suas chances.

Não só. A morte de Eduardo Campos (PSB-PE) fez com que sua vice, Marina Silva, assumisse a cabeça de chapa. Líderes evangélico­s que apoiavam Everaldo trocaram de lado, avistando “a verdadeira chance” de colocar “uma deles” no Planalto. “Vários acharam que a morte de Campos foi divinament­e orientada para ela chegar ao poder.” Marina terminou em terceiro lugar.

A cena para 2018 ainda é confusa, diz Vital. “A grande aposta” no meio era o pré-candidato a presidente Jair Bolsonaro (PSC-RJ), católico batizado por Everaldo nas águas do rio Jordão, na Palestina, em 2016. Os dois romperam, e Bolsonaro procura novo partido. AUTORES Christina Vital da Cunha, Paulo Victor Leite Lopes e Janayna Lui EDITORA lançado pela Fundação

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30.out.2010 - Raquel Cunha/Folhapress Christina Vital, coautora do livro ‘Religião e Política’

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