Folha de S.Paulo

AS ONDAS DA GUERRA

Entre o silêncio e a histeria, obras da Bienal de Charjah, maior mostra de arte do Oriente Médio, refletem sobre um mundo abalado por conflitos

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estancados pela intolerânc­ia.

Não por acaso, trabalhos como o do mexicano Mario García Torres e os das libanesas Nesrine Khodr e Stéphanie Saadé versam sobre rios, lagos, mares e piscinas, tanto como elementos de ligação entre os povos quanto de irrigação de plantações às vezes nocivas.

Mas nem todos funcionam. Nos dias de abertura da exposição, há uma semana, Tohme foi alvo de críticas por alinhavar sem nexo muito nítido ali os trabalhos dos quase cem artistas escalados, muitos deles ensaios vagos sobre a situação na região e outros medíocres mesmo, fora de contexto.

Sua onda seria, no caso, ao mesmo tempo um avanço e um recuo, como a obra do turco Baris Dogrusöz, que transformo­u fotogramas do mapa de seu país usados para ilustrar conflitos nos telejornai­s em pôsteres, estampas exuberante­s a mascarar a violência.

“É uma arqueologi­a visual, com uma pulsação entre elementos políticos e catástrofe­s geológicas”, diz o artista. “Essa é a imagem do conflito entre o Ocidente e o Oriente.” ENTRELINHA­S Mesmo se expressand­o pelas entrelinha­s, muitos trabalhos desta edição conseguem vencer o filtro imposto pelos xeques que financiam a mostra, avessos a sexo e trabalhos políticos explícitos demais.

Um deles é a instalação de Tonico Lemos Auad, um dos quatro brasileiro­s nesta Bienal de Charjah. Seu trabalho é um jardim de plantas medicinais,

CHRISTINE TOHME

curadora da Bienal de Charjah algumas delas também venenosas ou alucinógen­as. As espécies banidas pelas autoridade­s de Charjah surgem como blocos concretado­s entre os ramos —permitidos— que florescem no sol escaldante.

Na mesma pegada ambígua, o filme de Jonathas de Andrade em que pescadores erotizados pela câmera acariciam seus peixes até a morte, em espasmos violentos de escamas, é outro a driblar esse cerco.

Sua poderosa meditação sobre a violência do amor, que estreou na Bienal de São Paulo, reitera a mensagem de Lemos Auad e de outros artistas da mostra de que o veneno também pode ser o antídoto dependendo da dose.

Nesse sentido, em ondas fracas e fortes, as obras da mostra tratam de estados latentes de construção e destruição, ou guerra e reparação.

O artista colombiano Oscar Murillo, por exemplo, transformo­u o pátio de um casarão árabe no que parece ser um canteiro de obras. Ele arrancou os tijolos do chão e empilhou diante das janelas, cegando a construção.

Nos buracos abertos no piso, cavou ainda mais, abrindo enormes trincheira­s entre suportes metálicos onde pendurou algumas de suas telas, flácidas como corpos de enforcados balançando na brisa.

Não muito longe dali, a dupla de artistas Eric Chen e Rain Wu, de Taiwan, ergueram uma barreira de escudos de polícia rodeando um jardim diante do maior museu de Charjah.

Mesmo sendo uma referência ao conflito histórico entre a ilha onde nasceram e o Japão, a muralha deslocada para o Oriente Médio não parece fora de contexto. É um eco de um estado de violência que parece cada vez mais enraizado em todas as partes do planeta, lembrando desde as manifestaç­ões no Brasil aos protestos contra abusos da polícia nos Estados Unidos.

Entre marés altas e baixas, essas obras em Charjah parecem se firmar como um ensaio —líquido e imprevisív­el— sobre a atualidade tempestuos­a, um ataque contra o deserto dos sentimento­s.

Tentamos ao máximo não trabalhar num vácuo. Quando você ouve falar de tantos artistas sendo presos, você se pergunta qual é o significad­o de tudo isso. É uma sensação de imobilidad­e total

O jornalista viajou a convite da Bienal de Charjah e da feira Art Dubai.

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