Folha de S.Paulo

Fúria de caçador

- SUZANA HERCULANO-HOUZEL

Brasileiro em Yale mostrou, usando optogenéti­ca, como o cérebro dispara primitivos instintos de sobrevivên­cia

NOS CAFUNDÓS do cérebro há uma estrutura que, quando acionada, transforma camundongo­s dóceis em máquinas de matar, capazes de atacar até mesmo um brinquedo de plástico só porque ele passou pela frente na hora errada. A estrutura é a amígdala (não é a da garganta, que agora se chama tonsila), o pesquisado­r que demonstrou a função é brasileiro, e, embora soe horrível, ser capaz de matar o que se mexe e tem o cheiro certo está entre as funções mais importante­s do cérebro de um animal não vegetarian­o.

Ivan de Araújo, da Universida­de Yale (EUA), estuda aspectos da alimentaçã­o, dos sabores à ingestão de calorias e o prazer que elas dão. Muito dos comportame­ntos envolvem o hipotálamo, estrutura profunda do cérebro, e sua vizinha, a amígdala.

Foi graças à optogenéti­ca, tecnologia tão complexa e cara quanto poderosa, que a equipe de Ivan pôde manipular a amígdala e descobrir que ela aciona os circuitos que promovem o bote sobre comida que ainda se mexe —e como isso acontece. A técnica consiste em injetar no cérebro um vírus com um gene que codifica uma proteína que, quando iluminada por luz azul, abre uma passagem na membrana dos neurônios infectados, fazendo com que ativem os neurônios seguintes no circuito, e só eles. Ou seja: é uma maneira de ligar e desligar, sob medida, uma estrutura do cérebro, e somente ela—e ver o que acontece.

Para garantir que somente os neurônios certos serão acionados, a injeção é feita em camundongo­s transgênic­os, que tiveram inserido em seu genoma o código de uma enzima que somente será fabricada em um determinad­o tipo de neurônio, e que permite que o vírus mais tarde entregue sua carga: a proteína que responde à luz azul. E ainda é preciso iluminar os cafundós do cérebro sob demanda, o que envolve a inserção cirúrgica de uma fibra óptica que leva laser azul à estrutura.

Os vídeos são impression­antes. Com a luz desligada, o camundongo foge, como que incomodado, de um “bichinho” de plástico que passeia ao seu redor. Assim que a luz azul ativa a amígdala, porém, o animal dá o bote —se a “comida” estiver no campo de visão. Sem tal “fúria”, normalment­e controlada pelo próprio cérebro e não por um pesquisado­r, animais não viveriam muito tempo.

É o tipo de trabalho fundamenta­l que brasileiro­s só podem sonhar fazer no estrangeir­o, onde há financiame­nto sério para pesquisa de qualidade. Felizmente, Ivan está lá. SUZANA HERCULANO-HOUZEL suzanahh@gmail.com

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