Folha de S.Paulo

Lava Jato tem histórico de fusão entre caixa 2, propina e doações

Prática deve dificultar distinção de repasses ‘com corrupção’ ou sem, como defendem políticos

- FELIPE BÄCHTOLD

Delatores da operação descrevera­m maior fluxo de pagamentos durante os períodos de campanha

A depender do histórico da Operação Lava Jato, será tarefa quase inviável distinguir o que é o caixa dois “com corrupção” do “sem corrupção”, com contrapart­idas, nas delações dos ex-executivos da empreiteir­a Odebrecht.

Em meio à tentativa do Congresso de elaborar uma anistia para essa prática, líderes do PSDB, como o expresiden­te Fernando Henrique Cardoso, e o ministro do Supremo Gilmar Mendes passaram neste mês a defender uma diferencia­ção entre esses repasses.

Na Lava Jato, porém, segundo os depoimento­s de delatores, os pagamentos via caixa dois saíam da mesma mesma fonte, uma espécie de “conta corrente da propina”, que era calculada com base nos valores de contratos públicos que grandes construtor­as tinham.

Os detalhes de pagamentos via caixa dois de empreiteir­as foram esmiuçados em depoimento­s ao longo da operação, desde 2014, que indicam uma profunda mistura entre essa prática, os repasses de propina e as doações oficiais. No caso da Odebrecht, os depoimento­s dos delatores ainda não foram tornados públicos.

O empresário Júlio Camargo, que foi um dos primeiros delatores da Lava Jato, chegou a dizer que “não era da sua conta” o que era feito com o dinheiro que pagava para manter seus negócios na Petrobras.

Ele e o doleiro Alberto Youssef afirmam que o volume de pagamentos a políticos aumentava em épocas de campanha para financiar os gastos eleitorais. A motivação, no entanto, era a mesma: garantir o apoio político em contratos públicos.

Camargo chegou a citar em uma audiência até o caso do ex-deputado federal Eduardo Cunha (PMDB-RJ). Segundo o delator, Cunha cobrou em meio à campanha municipal de 2012 pagamentos, que tinham origem em contratos da Petrobras, para financiar seus aliados na eleição. O ex-deputado vem negando as acusações feitas.

Pelos relatos dos delatores,

Eu pagaria a eles [diretores da Petrobras], e a distribuiç­ão que eles fossem fazer internamen­te não seria de minha conta

JULIO CAMARGO

empresário, em depoimento

LUCIANO SANTOS

advogado da área de direito eleitoral em casos que em sua maioria já tiveram sentença expedida em primeira instância, o percentual de propina em contratos da Petrobras era de 1%. Parte dos valores ia para agentes da estatal, como diretores e gerentes, e parte era destinado ao que já foi chamado por empresário­s de “entendimen­tos políticos”.

O empreiteir­o Ricardo Pessoa, dono da UTC, entregou em seu acordo de colaboraçã­o uma lista de pagamentos em caixa dois, que ainda estão sendo analisados em inquéritos no Supremo.

Ele listou ocasiões em que houve entrega de dinheiro em espécie para caixa dois de campanha e disse que Alberto Youssef era “como se fosse um banco de valores” — era o “guardador” de seu dinheiro vivo.

O ex-executivo da Camargo Corrêa Eduardo Leite disse à Justiça Eleitoral que a “obrigação” do grupo era pagar o 1%, como acertado com o então tesoureiro do PT João Vaccari, sugerindo que isso independia da forma. “Ele pode ter falado propina, pixuleco, qualquer coisa”, disse. REPERCUSSíO A própria Procurador­ia-Geral da República, em documentos sobre a Odebrecht, tenta distinguir repasses eleitorais sem contrapart­ida, o “caixa dois do bem”, e os que envolvem expectativ­a de algo definido em troca.

O advogado especialis­ta em direito eleitoral Luciano Santos, do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, diz que essa discussão nunca ocorreu na Justiça Eleitoral e que o assunto só entrou em debate agora porque, com as delações premiadas, há um detalhamen­to muito maior sobre a prática.

“O que se imagina é que o caixa dois do bem vai ser o ‘meu’ e o do mal vai ser ‘o dos outros’. É subjetivo demais, não dá para fazer essa distinção”, afirma ele.

Se o dinheiro chegou de forma ilegal, diz, ele pode estar “contaminad­o” por lavagem de dinheiro, sonegação ou falsidade ideológica.

Não dá para fazer essa distinção [entre o caixa dois]. Como o juiz vai determinar quem recebeu dinheiro limpo ou que estaria sujo? Não há virtude ali

IMPLICAÇÕE­S Na legislação, não há tipificaçã­o específica para caixa dois eleitoral. Ele é atualmente encaixado no artigo 350 do Código Eleitoral (omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar) Até 2012, o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) não aceitava esse enquadrame­nto, rejeitando denúncias nesse sentido Depois disso, algumas decisões passaram a permitir que os candidatos fossem processado­s por este artigo

 ?? Paulo Lisboa/Folhapress ?? O doleiro Alberto Youssef, que relatou pagamento de propina e financiame­nto de campanha na Operação Lava Jato
Paulo Lisboa/Folhapress O doleiro Alberto Youssef, que relatou pagamento de propina e financiame­nto de campanha na Operação Lava Jato

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