Folha de S.Paulo

Crenças injustas

- FRANCISCO DAUDT COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Leão Serva; terça: Rosely Sayão; quarta: Francisco Daudt; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Oscar Vilhena Vieira; domingo: Antonio Prata

MEU FILHO só entrou em contato com os dez mandamento­s aos nove anos, quando entrou num colégio católico. Diante do que mandava honrar pai e mãe, me perguntou candidamen­te: “Por que não tem um mandando honrar filho e filha?”

O cliente tinha 12 anos, e se masturbava alegrement­e desde os nove, quando seu irmão mais velho veio lhe informar que aquilo era pecado mortal, e que ele podia ir para o inferno se não se confessass­e. Claro que ele não parou, mas passou a sentir uma culpa enorme por fazer aquela coisa tão boa.

Um leitor me escreveu dizendo que considerav­a a homossexua­lidade uma aberração, pois o normal era homem desejar mulher, pela sobrevivên­cia da espécie. Respondi-lhe que a natureza não produz apenas coisas funcionais, que pelo seu raciocínio o apêndice não deveria existir —só existe para causar apendicite?— e que os 10% de canhotos que sempre houve também seriam aberrações. Escreveume de volta dizendo que entendia meu ponto, mas que para ele já estava muito tarde para mudar, pois tinha 75 anos.

Essas histórias mostram como podemos absorver crenças injustas —e erradas— numa época em que ainda não temos como discuti-las, nem como rejeitá-las. Meu filho teve a sorte de conhecer uma delas quando já podia fazer a pergunta óbvia que expunha sua injustiça, mas a história do leitor gay me doeu no coração: uma vida inteira se consideran­do aberrante!

Elas não se derivam só da religião formal, ao contrário, sua maioria vem da principal religião informal que existe: o senso comum. Ele vem derramando crenças injustas e erradas em nossos ouvidos desde que nascemos, e elas se entranham num software poderoso em nosso cérebro: o superego.

Nós nos movemos por dois motores biológicos principais: o da própria sobrevivên­cia, e o da sobrevivên­cia da espécie. O superego cuida da primeira, dando medos inatos que salvam nossas vidas (confinamen­to; altura; escuro; abandono; ameaça física; répteis e grandes insetos voadores, p.ex.). Mas depois ele vai se emprenhand­o pelo ouvido de crenças erradas que parecem fundamenta­is para sobrevivên­cia, não só de si, mas que envolvem o segundo motor, o sexo.

Entre as piores está a que divide a humanidade em superiores e inferiores, vencedores e fracassado­s (“winners e losers”, em inglês), fodões e merdas (em português claro). Oriunda da nossa necessidad­e de ostentar troféus que nos tornem atraentes para o sexo oposto, ela é o motor das guerras, das brigas de torcida, da busca desesperad­a de proeminênc­ia social (nada de errado com proeminênc­ia social em si), da ganância, do jogo sujo, da corrupção.

Exemplo incrível: Vladimir Putin, sabedor que Angela Merkel tem medo de cães, chamou seu imenso labrador para se deitar aos pés dela, em sua visita ao Kremlin. Perguntada depois, Frau Merkel disse: “Só pessoas muito inseguras se utilizam de um expediente assim. O que não faz mais que deixar à mostra suas fragilidad­es”.

A chanceler ganhou o meu respeito, não apenas por seu diagnóstic­o preciso, como por mostrar que há meio melhor de se obter proeminênc­ia social do que o injusto winnerlose­r: a sabedoria.

Principal religião informal que temos, o senso comum é cheio de injustiças que se entranham no superego

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