É preciso questionar por qual cultura a classe artística protesta
FOLHA
As ruas malcuidadas do centro por onde passou o cortejo de artistas do movimento Frente Única de Cultura se revelaram como precisa metáfora —com o perdão do paradoxo— para as condições em que hoje se encontra a pasta de Cultura na gestão do prefeito João Doria e de seu secretário André Sturm.
Foi exatamente sobre esse assunto que o Grande Ato pelo Descongelamento da Cultura, desdobrado em alas permeadas por muita música, palavras de ordem e performances, falou quando foi a público na segunda (27).
A categoria artística paulistana, embora oscile historicamente entre o posto do gênio socialmente incompreendido e o da classe trabalhadora, tem empenhado real esforço, há pelo menos duas décadas, para associar o ofício artístico às questões políticas institucionais concernentes ao gerenciamento da cultura pelo poder público na cidade e no estado de São Paulo.
É urgente que a arte seja percebida na sociedade como produção material, ainda que por vias simbólicas, de conhecimento e experiência; isso não significa, no entanto, a constituição de um elo de compra e venda, consumo e descarte, como supõem nossos gestores públicos.
Sturm e Doria são defensores da privatização dos aparelhos públicos; planejam, por exemplo, conceder a administração de 52 bibliotecas e de centros culturais a organizações sociais, seguindo o modelo das Fábricas de Cultura de Geraldo Alckmin.
Como foi dito no dia 27, cultura não é mercadoria, embora crie empregos, renda e vínculos de produtividade. A discussão não se restringe ao apelo técnico e orçamentário do congelamento de milhões de reais. mas alcança territórios de análise sobre a desarticulação de projetos municipais para a comunidade.
É o que se alega ter ocorrido nos programas Vocacional e Piá; mais de 300 artistaseducadores foram demitidos sob a justificativa de renovação de quadro e impasses jurídicos. Para os artistas, trata-se de desmonte político do projeto de continuidade (trabalhista e pedagógica) estabelecido junto à secretaria de Cultura na gestão Haddad.
Em fevereiro Sturm se reuniu com os trabalhadores da cultura no Centro Cultural São Paulo; depois não houve mais diálogo. A secretaria segue informando que os programas estão funcionando.
Diante desse panorama abre-se uma indagação espinhosa irrecusável: fala-se de valorização da cultura, mas qual cultura? É possível continuar a considerar o significado genérico da ideia de cultura como regra geral em uma cidade tão profundamente diversa quanto São Paulo?
As geladeiras parafusadas pelos manifestantes às portas da prefeitura parecem uma imagem interessante para expressar o congelamento, mas os transeuntes reconhecem esse signo? A população tomou conhecimento das pautas da Frente Única?
Na mesma noite do ato no centro, houve também programação de resistência em Itaquera; é sintomático que não tenha sido tão noticiada como o primeiro.
Na própria região da República ocorria uma atividade paralela: ao voltar para casa, me deparei com um grupo de africanos no coreto principal da praça, entoando cânticos e batuques muito intensos.
Imaginei tratar-se de algum tipo de celebração ou rito de vinculação identitária, um exercício de memória fundamental para a sobrevivência do imigrante, ou seja: cultura —não a da pasta e das pautas institucionais abarcadas por esse texto até agora.
Qual é o ponto de encontro entre os artistas, nomeados oficiais agentes da promoção cultural, e os imigrantes, os periféricos, os demais movimentos sociais, a classe trabalhadora como totalidade? Em qual rua do centro ou das margens haverá esse cruzamento livre de paradigmas de poder e de hierarquias?
A guerra é contra o autoritarismo de Doria e Sturm, mas a autocrítica é importante como forma de radicalização do pensamento.
As respostas a essas e outras questões a emergir nesses tempos talvez não se apresentem tão objetivas, mas o labor político, estético e pedagógico opera justamente nessas lacunas, por oposição, tornando visíveis e evidentes as contradições daquilo que se naturalizou como norma, estrutura e indulgência. PALOMA FRANCA AMORIM